Na
hora da pelada eu era o último a ser escolhido, ou melhor, eu não era
escolhido, apenas fazia número no time desfalcado.
No
início eu achava humilhante, mas depois fui me acostumando com a idéia. O
problema era quando tinha muita gente, daí, às vezes, nem jogar eu jogava...
uma lástima.
Isso
tudo só porque eu não era bom de bola, aliás, não sou até hoje. Por mais que eu
me esforçasse em dar um bom passe ou arriscar um drible no adversário, quase
todas as minhas tentativas iam por água abaixo. O passe ia nos pés do
adversário, que imediatamente puxava o contra-ataque, o drible não enganava
ninguém, quando muito, só enganava a mim mesmo. Eu era, e ainda sou, um pereba,
ou num linguajar mais conhecido, um perna-de-pau.
Na
rua, o bom de bola era o Argemiro, mas o Fabinho e o Evaristo também jogavam
bem. Esses moleques, como dizia um treinador velho da rua, foram criados com
bola. Disputavam todos os campeonatos possíveis: da escola, de peladas do
bairro, e logo depois, já com seus 18 anos, foram disputar o campeonato de
futebol amador do Rio. O Argemiro, por exemplo, era o craque do Guaratiba, o
Fabinho, por muito tempo, defendeu as cores do Kosmos, enquanto o Evaristo
jogava pelo Vila da Penha.
Enquanto
eu, com minha falta de habilidade, disputava, quando muito, os campeonatos de
futebol de botão da rua, ou então, era convidado a disputar torneio em outro
bairro, com outros moleques. Mas a verdade é que jogar futebol de botão é tão
difícil quanto bater uma pelada, mas, pelo menos, conseguia vencer, fazer gols
e até ser campeão!
Vida
de perna-de-pau é frustrante. Com os amigos da rua a gente joga, corre, faz
feio, mas se o assunto for disputa pra valer, aí você some. Ninguém lembra de
você. O importante é compor um time com gente bom de bola. Montar um time mais
forte para ganhar o troféu e as medalhas. Quem vai querer um pereba pra vestir
camisa? Ninguém.
O
ruim-de-bola só serve para carregar o material esportivo, aliás, o parco
material: as 11 camisas do time, já surradas de tanto lavar, duas bolas em
péssimo estado, 11 pares de meião branco, já todos deteriorados, sem elástico.
Tudo isso dentro dum saco. Short? Nem pensar. Cada um levava o seu, de cor
preta.
No
dia e horário marcado para o jogo, eu distribuía o material aos jogadores:
Luisim era camisa 9, artilheiro do time; o Argemiro, o 10; Fabinho, quase
sempre, ficava com a 7 e o Evaristo preferia a 11, pois, como canhoto, jogava
na esquerda e, tradicionalmente, os números 6 e 11 são números de canhotos.
Eu
ficava a reparar nisso tudo e sonhava em vestir uma dessas camisas, fazer
parte, verdadeiramente, do time.
Os
reservas não tinham camisa. Quando um se machucava ou era substituído, o
substituto vestia a camisa suja e suada de seu antecessor, tudo pela busca da
vitória, das medalhas.
E
foi num dia sem banco de reservas que eu entrei em campo!
Os
quatro moleques, que sempre esquentavam o banco, não compareceram ao jogo: o
Adriano quebrou o braço, Celso foi assassinado, Brizola foi preso e o Jerônimo
não pode ir, pois estava de catapora. Só sobrou eu!
Betão,
o técnico do time, olhou pra mim com um ar triste. Não tinha ninguém pra colocar
no lugar do Argemiro... logo o Argemiro! O craque do time. Argemiro levou uma
pancada na panturrilha e mancava em campo. Não conseguia mais nem caminhar.
Betão
era um técnico experiente. Já tinha ganhado o último torneio, sabia mexer bem
no time. Mas como ele garantiria um bom rendimento com minha presença em campo?
Betão
resolveu recuar o Fabinho, deixá-lo no lugar do Evaristo, pois Fabinho era
habilidoso, sabia muito bem armar jogada. Eu ia compor o ataque com o Luisim,
vejam só!
Argemiro
saiu de campo e me passou a camisa 10 suja e suada. Tremi dos pés a cabeça com
a oportunidade. Se tranqüilo eu já era ruim de bola, vocês imaginem nervoso?
Betão
me orientou a ficar o tempo todo dentro da área pelo lado direito, enquanto o
Luisim ficava no meio.
Entrei
aos 22 do segundo tempo. O time do Santa Rosa havia empatado há pouco, tava 1 X
1. A pressão do Santa Rosa era grande. Tinha um zagueiro enorme, um baita
crioulo, chamado Paulão. Paulão batia muito: dava soco, pontapé, empurrão...,
foi ele quem machucou o Argemiro. Olhei para a sua cara suada e assustadora e
engoli a seco a pancada que me esperava.
O
jogo prosseguiu e só aos 30 consegui tocar na bola, dei um passe errado, nos
pés do adversário. Betão me xingou de tudo e qualquer nome.
O
Santa Rosa pressionava, o nosso time era o Santa Cruz, talvez uma homenagem ao
Santa Cruz do Recife, mas sendo do Rio, por que homenagear o Santa? Não sei,
aliás, só depois fiquei sabendo que o nome fora dado pelo próprio Betão, pois o
pai do Betão era Santa doente.
Pois
é: um jogo decisivo, um perna-de-pau no ataque, a torcida caindo em cima, o
técnico arrancando os cabelos (desculpe, o Betão tava careca, não podia
arrancar mais nada), o que faltava mais? O gol do Santa Rosa.
Foi
assim, num penalty, que o adversário virou a partida.
Depois
do gol do adversário, a partida ficou equilibrada. Parecia que o jogo estava
findado. O nosso time não reagia. Paulão batia mais ainda. O juiz fingia que
não via, ou que não era falta.
Até
que num lançamento do Fabinho fiquei cara-a-cara com o goleiro, depois dum
escorregão espetacular do Paulão. Não acreditei quando surgi livre na frente do
goleiro. Resolvi chutar forte, nem olhei para os lados, um companheiro podia
estar livre, mas decidi fechar os olhos e pensar num chute forte e certeiro,
como os vistos na TV em dias de jogos. Mandei um “três dedos”, como
profissional..., e para meu espanto e de todos, deu certo, ou melhor, quase
certo. A bola parecia ir no canto direito do goleiro, mas fez uma curva diabólica
para a esquerda e bateu na trave esquerda do gol adversário. O goleiro já há
muito tempo estava vendido no lance e, pra minha sorte, o Luisim pegou o rebote
e colocou no fundo das redes. Goooool! Foi a minha consagração. Tinha participado
do lance que originou o gol de empate do Santa Cruz!
A
partir disso, fiquei em campo me sentindo o craque, o bom. Quando recebia a
bola, fazia pose de craque, estufava o peito, tentava arcar as pernas (todo
mundo que tem perna arcada é bom de bola), dava um toque refinado, passava o pé
nela, mesmo que os passes fossem errados, eu dava uma de craque desatento,
afinal de contas, o gol tinha nascido da minha jogada, mesmo contando com a
ajuda da lama que fez o Paulão cair de bunda, mas tinha feito a jogada.
Se
o jogo acabasse ali, eu seria o grande nome, mas não por ter driblado todo
mundo ou por ter feito algum gol, apenas por ninguém dar nada por mim. Afinal,
todos sabiam que eu era ruim de bola. Nem marcação eu recebia! Ficava livre num
canto do campo, esperava a bola que nunca vinha. Era mais fácil o Fabinho mandar
pro Evaristo, que já estava com três marcadores em cima, do que pra mim, livre
e desimpedido. Se eu dominasse a bola não havia garantia de continuidade na
jogada, ou a zaga conseguia facilmente roubar, ou, eu simplesmente passava a
bola errado.
E
foi aos 47 que minha sorte mudou, aliás, voltou ao que sempre foi. O Evaristo
driblou todo mundo pela esquerda, entrou na área. O Paulão saiu pra quebrar,
mesmo que custasse penalty. Evaristo deu drible de corpo e fez Paulão catar
cavaco no chão, o goleiro saiu imediatamente, tentando abafar a chegada do
atacante indesejado, mas Evaristo, pro meu azar, deu de biquinho na bola,
tirando do goleiro, me deixando sozinho, eu e a trave, eu e o gol escancarado.
Foi uma fração de segundos. Eu poderia parar a bola e, com muita calma, olhar e
chutar. No futebol, a calma é a principal arma dos perebas, pois falta
habilidade, falta técnica. Um toque com calma pode significar acerto. Mas não
foi o que fiz, do jeito que ela veio tentei mandar com estilo de esquerda...,
eu e a trave, a trave e eu. A bola subiu, subiu, subiu. Talvez se quisesse,
nunca mais eu conseguiria fazer aquilo.
A
bola subiu tanto que na descida quase caiu em cima do travessão, foi por pouco...
Perdi
a chance de fazer um gol e, talvez, até a minha avó conseguisse o feito. Perdi
o gol e perdi a chance de vencer a partida.
Ao
fim do jogo, sai correndo pra casa, pois meia dúzia de moleques, torcedores do
time, queriam me bater.