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sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

CONTO: História de um Pereba


Na hora da pelada eu era o último a ser escolhido, ou melhor, eu não era escolhido, apenas fazia número no time desfalcado.
No início eu achava humilhante, mas depois fui me acostumando com a idéia. O problema era quando tinha muita gente, daí, às vezes, nem jogar eu jogava... uma lástima.
Isso tudo só porque eu não era bom de bola, aliás, não sou até hoje. Por mais que eu me esforçasse em dar um bom passe ou arriscar um drible no adversário, quase todas as minhas tentativas iam por água abaixo. O passe ia nos pés do adversário, que imediatamente puxava o contra-ataque, o drible não enganava ninguém, quando muito, só enganava a mim mesmo. Eu era, e ainda sou, um pereba, ou num linguajar mais conhecido, um perna-de-pau.
Na rua, o bom de bola era o Argemiro, mas o Fabinho e o Evaristo também jogavam bem. Esses moleques, como dizia um treinador velho da rua, foram criados com bola. Disputavam todos os campeonatos possíveis: da escola, de peladas do bairro, e logo depois, já com seus 18 anos, foram disputar o campeonato de futebol amador do Rio. O Argemiro, por exemplo, era o craque do Guaratiba, o Fabinho, por muito tempo, defendeu as cores do Kosmos, enquanto o Evaristo jogava pelo Vila da Penha.
Enquanto eu, com minha falta de habilidade, disputava, quando muito, os campeonatos de futebol de botão da rua, ou então, era convidado a disputar torneio em outro bairro, com outros moleques. Mas a verdade é que jogar futebol de botão é tão difícil quanto bater uma pelada, mas, pelo menos, conseguia vencer, fazer gols e até ser campeão!
Vida de perna-de-pau é frustrante. Com os amigos da rua a gente joga, corre, faz feio, mas se o assunto for disputa pra valer, aí você some. Ninguém lembra de você. O importante é compor um time com gente bom de bola. Montar um time mais forte para ganhar o troféu e as medalhas. Quem vai querer um pereba pra vestir camisa? Ninguém.
O ruim-de-bola só serve para carregar o material esportivo, aliás, o parco material: as 11 camisas do time, já surradas de tanto lavar, duas bolas em péssimo estado, 11 pares de meião branco, já todos deteriorados, sem elástico. Tudo isso dentro dum saco. Short? Nem pensar. Cada um levava o seu, de cor preta.
No dia e horário marcado para o jogo, eu distribuía o material aos jogadores: Luisim era camisa 9, artilheiro do time; o Argemiro, o 10; Fabinho, quase sempre, ficava com a 7 e o Evaristo preferia a 11, pois, como canhoto, jogava na esquerda e, tradicionalmente, os números 6 e 11 são números de canhotos.
Eu ficava a reparar nisso tudo e sonhava em vestir uma dessas camisas, fazer parte, verdadeiramente, do time.
Os reservas não tinham camisa. Quando um se machucava ou era substituído, o substituto vestia a camisa suja e suada de seu antecessor, tudo pela busca da vitória, das medalhas.
E foi num dia sem banco de reservas que eu entrei em campo!
Os quatro moleques, que sempre esquentavam o banco, não compareceram ao jogo: o Adriano quebrou o braço, Celso foi assassinado, Brizola foi preso e o Jerônimo não pode ir, pois estava de catapora. Só sobrou eu!
Betão, o técnico do time, olhou pra mim com um ar triste. Não tinha ninguém pra colocar no lugar do Argemiro... logo o Argemiro! O craque do time. Argemiro levou uma pancada na panturrilha e mancava em campo. Não conseguia mais nem caminhar.
Betão era um técnico experiente. Já tinha ganhado o último torneio, sabia mexer bem no time. Mas como ele garantiria um bom rendimento com minha presença em campo?
Betão resolveu recuar o Fabinho, deixá-lo no lugar do Evaristo, pois Fabinho era habilidoso, sabia muito bem armar jogada. Eu ia compor o ataque com o Luisim, vejam só!
Argemiro saiu de campo e me passou a camisa 10 suja e suada. Tremi dos pés a cabeça com a oportunidade. Se tranqüilo eu já era ruim de bola, vocês imaginem nervoso?
Betão me orientou a ficar o tempo todo dentro da área pelo lado direito, enquanto o Luisim ficava no meio.
Entrei aos 22 do segundo tempo. O time do Santa Rosa havia empatado há pouco, tava 1 X 1. A pressão do Santa Rosa era grande. Tinha um zagueiro enorme, um baita crioulo, chamado Paulão. Paulão batia muito: dava soco, pontapé, empurrão..., foi ele quem machucou o Argemiro. Olhei para a sua cara suada e assustadora e engoli a seco a pancada que me esperava.
O jogo prosseguiu e só aos 30 consegui tocar na bola, dei um passe errado, nos pés do adversário. Betão me xingou de tudo e qualquer nome.
O Santa Rosa pressionava, o nosso time era o Santa Cruz, talvez uma homenagem ao Santa Cruz do Recife, mas sendo do Rio, por que homenagear o Santa? Não sei, aliás, só depois fiquei sabendo que o nome fora dado pelo próprio Betão, pois o pai do Betão era Santa doente.
Pois é: um jogo decisivo, um perna-de-pau no ataque, a torcida caindo em cima, o técnico arrancando os cabelos (desculpe, o Betão tava careca, não podia arrancar mais nada), o que faltava mais? O gol do Santa Rosa.
Foi assim, num penalty, que o adversário virou a partida.
Depois do gol do adversário, a partida ficou equilibrada. Parecia que o jogo estava findado. O nosso time não reagia. Paulão batia mais ainda. O juiz fingia que não via, ou que não era falta.
Até que num lançamento do Fabinho fiquei cara-a-cara com o goleiro, depois dum escorregão espetacular do Paulão. Não acreditei quando surgi livre na frente do goleiro. Resolvi chutar forte, nem olhei para os lados, um companheiro podia estar livre, mas decidi fechar os olhos e pensar num chute forte e certeiro, como os vistos na TV em dias de jogos. Mandei um “três dedos”, como profissional..., e para meu espanto e de todos, deu certo, ou melhor, quase certo. A bola parecia ir no canto direito do goleiro, mas fez uma curva diabólica para a esquerda e bateu na trave esquerda do gol adversário. O goleiro já há muito tempo estava vendido no lance e, pra minha sorte, o Luisim pegou o rebote e colocou no fundo das redes. Goooool! Foi a minha consagração. Tinha participado do lance que originou o gol de empate do Santa Cruz!
A partir disso, fiquei em campo me sentindo o craque, o bom. Quando recebia a bola, fazia pose de craque, estufava o peito, tentava arcar as pernas (todo mundo que tem perna arcada é bom de bola), dava um toque refinado, passava o pé nela, mesmo que os passes fossem errados, eu dava uma de craque desatento, afinal de contas, o gol tinha nascido da minha jogada, mesmo contando com a ajuda da lama que fez o Paulão cair de bunda, mas tinha feito a jogada.
Se o jogo acabasse ali, eu seria o grande nome, mas não por ter driblado todo mundo ou por ter feito algum gol, apenas por ninguém dar nada por mim. Afinal, todos sabiam que eu era ruim de bola. Nem marcação eu recebia! Ficava livre num canto do campo, esperava a bola que nunca vinha. Era mais fácil o Fabinho mandar pro Evaristo, que já estava com três marcadores em cima, do que pra mim, livre e desimpedido. Se eu dominasse a bola não havia garantia de continuidade na jogada, ou a zaga conseguia facilmente roubar, ou, eu simplesmente passava a bola errado.
E foi aos 47 que minha sorte mudou, aliás, voltou ao que sempre foi. O Evaristo driblou todo mundo pela esquerda, entrou na área. O Paulão saiu pra quebrar, mesmo que custasse penalty. Evaristo deu drible de corpo e fez Paulão catar cavaco no chão, o goleiro saiu imediatamente, tentando abafar a chegada do atacante indesejado, mas Evaristo, pro meu azar, deu de biquinho na bola, tirando do goleiro, me deixando sozinho, eu e a trave, eu e o gol escancarado. Foi uma fração de segundos. Eu poderia parar a bola e, com muita calma, olhar e chutar. No futebol, a calma é a principal arma dos perebas, pois falta habilidade, falta técnica. Um toque com calma pode significar acerto. Mas não foi o que fiz, do jeito que ela veio tentei mandar com estilo de esquerda..., eu e a trave, a trave e eu. A bola subiu, subiu, subiu. Talvez se quisesse, nunca mais eu conseguiria fazer aquilo.
A bola subiu tanto que na descida quase caiu em cima do travessão, foi por pouco...
Perdi a chance de fazer um gol e, talvez, até a minha avó conseguisse o feito. Perdi o gol e perdi a chance de vencer a partida.
Ao fim do jogo, sai correndo pra casa, pois meia dúzia de moleques, torcedores do time, queriam me bater. 

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