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sábado, 3 de dezembro de 2011

Conto: "JOB" - Por Ricardo Maurício P. Nunes


Havia um homem que era muito pobre. Morava à beira de um rio na periferia. Era profundamente infeliz. Talvez se chamasse Josué, ou Josafá, talvez Joel. Ou simplesmente Jó, como o da Bíblia, que era como o conheciam. Mas não tinha nem nunca tinha tido, como este, amigos nem pessoas próximas, nem nada o que perder. Salvo uma canoa, que aos sábados pegava, cheio de fel, para descer o leito do rio.
Por si mesma, a miséria não é um requisito para a tristeza, muito menos então para a alegria, mas Jó perversamente agarrava-se a essa condição para justificar todos os seus fracassos, a origem de todas as mazelas de sua alma. No entanto, simulava viver bem e julgava não ser desonesto. Supunha grandioso seu Destino e que suas penúrias eram obra de um Acaso transitório, mas no fundo nunca acreditou na esperança. Dava conselhos na paróquia que freqüentava aos pobres de espírito, imitava os hábitos arrogantes da gente de posses, e proclamava com falsa modéstia que a cornucópia era uma benção divina, mas que a simplicidade e a moderação convinham aos homens sábios. Vivia das intrigas que armava e comprazia-se nas desgraças alheias. Era, na verdade, um homem amargo. Consumiam-no a inveja e o orgulho. E no fundo era grande a vergonha que sentia de sua condição e de suas torpezas. Não sabia viver de outro modo. Oneravam seu Acaso as cheias do rio e as moléstias purulentas que trazia por debaixo da túnica.
Até que um dia o Acaso despersuadiu-se da certeza que tinha de que mal e bem eram frutos da mesma sorte, filhos da mesma mãe. E o Acaso foi ter com o Destino.
O Destino vinha de dar uma volta pelo mundo.
E soube de quem lhe queria falar o Acaso, que protestou contra as determinações que havia imposto àquele homem. Desaviram-se. Argüiu o Destino que então o Acaso cuidasse de Jó, e que depois veriam. O Acaso assentiu e retirou-se de sua presença.
A balança da ventura passou a pender para o lado de Jó. Em pouquíssimo tempo obteve sua fortuna, suas feridas secaram e viu-se cercado de coisas e de gente. E dizia vaidoso e cheio de pompa que estava apenas colhendo o produto do seu caminho. Em nenhum momento lembrou-se do Acaso, e continuou devoto do Destino e do fausto. Dizia bravatas e alimentava seu ego com a superficialidade das pessoas que o rodeavam e nutriam suas desídias. Teve mais recursos e ensejos para propalar seus rancores. Tramou politicagens e ordenou execuções. Estimou que nada nem ninguém podiam contra seu Destino de ser grande. Porém, perseveravam em seu íntimo a vilania e a amargura antigas. A vergonha foi substituída pela soberba; a dor das pústulas, por uma dor no fígado ou na consciência; e a velha cegueira da noite escura da alma o cegava agora com uma luz ofuscante. Fascinado, esqueceu-se de outrora. Repudiou o tempo em que aquela felicidade ainda não havia batido à sua porta, como se ela sempre houvesse estado com ele, servil como um cão. Mas era, em essência, a mesma pessoa.
Não tardou para que o Acaso reconhecesse sua ingratidão, para que soubesse que perdia a aposta com o Destino. Pagou o estipulado, fez as contas do tempo, viu que já estava mais do que na hora, e pela segunda e última vez retirou-se de sua presença. O Destino quis dizer alguma coisa, mas calou, eram loquazes os acontecimentos.
Jó reencontrou a miséria que havia perdido, se é que isso se possa perder. Restituiu-se-lhe a antiga solidão no barranco à beira do rio, o pus das úlceras recrudesceu. Revisitaram-no a vergonha e o opróbrio ordinários. Tornou-se muito mais insuportável do que antes sua vida. Tardou, anoiteceu e madrugou só, como em antanho. Sentiu que havia fracassado na boa aventurança. Mas clareava o dia quando pensou que os fatos anteriores tinham sido apenas um sonho ou um delírio que durou, e que talvez estivesse melhor assim, como quem era de fato. Do lado de fora amanhecia o dia a luz do Sol, que não pode iluminar nada além do que a superfície das coisas.
Era sábado. Jó tomou sua canoa, desceu o rio. Cheio de fel.

Ricardo M P Nunes, jul`10

Um comentário:

  1. Para entender os textos de Ricardo Nunes não basta conhecê-lo, pois como pessoa, não demonstra ser alguém tão capaz de transpirar tanta sensibilidade, tanta razão, pois é simples, como um mero botequim.
    Jorge Luis Borges e Gabriel Garcia Márquez são alguns dos autores que influenciaram a sua personalidade e a sua vida literária.
    Aliado a tudo isso e sempre com boas amizades: o copo, o cigarro, a idéia e a Literatura fazem de Ricardo M P Nunes um colaborador oficial de "O Botequim".

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