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quinta-feira, 6 de setembro de 2012

MARIGUELLA, QUEM É VOCÊ, AFINAL?

Carteira de Mariguella de membro do Partido Comunista.
A edição do mês de agosto da Revista Cult trouxe o interessantíssimo artigo ‘Mariguella, quem é você, afinal?’, uma alusão ao filme da documentarista Isa Grispum Ferraz, sobrinha de Carlos Mariguella, que estreou no mês passado. 
Mas quem foi Mariguella? 
Mariguella é considerado um dos grandes nomes da resistência nacional contra a opressão dos governos ditatoriais, principalmente na Era Vargas e durante a década de 60. Em 1969, publicou o famoso manifesto Minimanual do Guerrilheiro Urbano que viria a se tornar uma espécie da obra-prima da literatura de guerrilha. 

** O Minimanual do Guerrilheiro Urbano foi escrito para servir de orientação aos movimentos revolucionários e libertários. Circulou em versões mimeografadas e fotocopiadas, algumas diferentes entre si, sem que se possa apontar qual é a original. Nesta obra, detalhou táticas de guerrilha urbana a serem empregadas nas lutas contra governos ditatoriais. Nos anos 80, a CIA – Central Inteligence Agency, dos Estados Unidos, fez traduções em inglês e espanhol para distribuir entre os serviços de inteligência do mundo inteiro e para servir como material didático na Escola das Américas, por ela mantida, no Panamá


O filme de Isa Ferraz tem por objetivo descrever o homem, o líder revolucionário e o tio Mariguella sob vários prismas, várias facetas. 
Para alguns, Mariguella não passou de um bandido comunista que teve o fim merecido. Para a esquerda, foi um líder que se consubstanciou num verdadeiro herói, pois abdicou toda a sua vida por um ideal, por seu sonho. 
Talvez, o efeito Mariguella ainda esteja muito recente na consciência política de alguns, seja por lembranças negativas ou mesmo positivas. Diante disso, só a história dirá, num momento futuro, quem foi realmente Carlos Mariguella. 
Confira o artigo da Cult sobre o filme Mariguella na visão de Isa Ferraz: 


Marighella, quem é você, afinal? 


Um mito para uma geração de resistentes, as ações e a história do guerrilheiro brasileiro chegam ao cinema.

“O tio Carlos é o Carlos Marighella” são as palavras que abrem o filme dirigido pela socióloga e documentarista Isa Grispum Ferraz, na época uma garota de dez anos a ouvir do pai as palavras que tombariam sobre sua cabeça com o peso da responsabilidade. Hoje, 42 anos depois, o resultado de mais de duas décadas de pesquisa, captação de recursos e desenvolvimento traz às telas a trajetória de um ícone da resistência brasileira. 
Militante, baiano, autor de Manual do Guerrilheiro Urbano e de tantos outros manifestos e símbolo da luta armada contra a opressão da ditadura militar, Marighella foi,como afirma Isa, uma figura que “não se deixou filmar”. A fim de preencher as lacunas rasgadas pela constante perseguição, o filmeMarighella, que estreia neste mês em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, apresenta a figura do ativista construída pela narração da sobrinha e textos lidos pelo ator Lázaro Ramos. 
Em entrevista à CULT, Isa – realizadora de O Povo Brasileiro (2000), sobre a obra do antropólogo Darcy Ribeiro– fala sobre a experiência de adaptar às telas o percurso de uma figura símbolo do combate à repressão. 

Resistência ontem e hoje 

Acho que o Brasil tem uma coisa que é diferente, e uma figura como o Marighella talvez seja muito brasileira. A frase que melhor explica o Marighella foi a última frase do último depoimento, que ele deu para uma jornalista amiga dele, da Bahia, chamada Ana Montenegro. Isso já no fim, depois do sequestro do embaixador. Ela pergunta: “Marighella, mas quem é você, afinal?”. Ele falou assim: “Sou mulato baiano”. Era o homem mais procurado da América Latina. O Marighella estava impregnado de Brasil. 
Também por ter passado muitos anos na cadeia, ele teve tempo de estudar o Brasil. Lia e estudava muito o cangaço, todos os movimentos populares do século 17 pra cá. Ele foi estudar para poder entender e pensar o Brasil. Tudo isso culmina na formação comunista rígida. 
Para dizer a verdade, eram todos moleques, mas que naquela época abriram mão de tudo. É isso que eu queria mostrar para as pessoas de hoje, para os jovens que não abrem mão nem de um iPod ou de um tênis “x”. Naquele momento, pessoas de classe média, classe média alta, estudantes da USP, universitários, meninas lindas, novinhas, abriram mão de tudo e saíram para cair na clandestinidade e não saber onde iriam dormir na noite seguinte. Em nome de que era isso? Em nome de uma ideia de Brasil, de uma ideia de país. Você pode achar que eles eram todos loucos, mas há de se pensar nisso. 
Eu acho que a diferença para hoje é que, naquele momento, o mundo estava numa transformação geral, um monte de coisas fervilhando, seja no Vietnã, seja em Cuba, na Argélia, os movimentos negros nos Estados Unidos, a libertação feminina, os valores estavam todos se transformando e as pessoas procurando algo além. Havia uma busca de uma coisa diferente, hoje não há busca de nada, acredito eu. 
As pessoas estão muito autocentradas, essa nova geração não está interessada. Acham que sempre vão descobrir a roda e vai começar tudo de novo. Acham que as vanguardas são agora e esquecem de tudo o que aconteceu antes. O Marighella (e mais um monte de gente) se doou para um ideal. Mas hoje não existe isso. Até pelos políticos que vemos hoje, o que é óbvio e não vale a pena nem gastar tempo, pois é ridículo. Acredito que o que falta no Brasil é educação pra todo mundo e educação é cultura. É pensar. 

O símbolo e o homem 

O Marighella conversou com a história do país e foi mudando, isso talvez seja a coisa mais interessante do personagem. Por isso acho que virou um ícone tão forte. Foi conversando com o tempo dele sempre, se referenciando no que estava acontecendo pelo mundo. Não dá pra entender a figura do Marighella sem olhar para o que estava acontecendo pelo mundo na época. 
Ele chegou a ser quem ele é por conta da personalidade dele, essa coisa expansiva e flexível, com muita curiosidade e a percepção do que estava em sua volta. Ao mesmo tempo, essa coisa da vida familiar dele, de um baiano, filho de anarquista, neto de escravo malês, também o marcou. Era um cara que amava a vida, mas que também sabia ser duríssimo, terrível, rigoroso, disciplinado… A pessoa que, afinal, escreveu o Manual do Guerrilheiro Urbano precisava ser um super-herói. Acho que Marighella virou um mito basicamente por causa da resistência dele na prisão. A tortura foi violentíssima. Arrancaram todas as unhas dele, queimaram os pés com maçarico, foi uma barbaridade com um cara de 21 anos. E ele não abriu a boca. Isso começou a correr pelo país. “Quem é esse mulato?”. 
Quase ninguém resistiu no golpe, acho que única voz foi dele, que levou o tiro e começou a gritar “abaixo a ditadura!”. Imediatamente, depois que se recuperou, voltou para ação já formulando a luta armada. Em 1964 inicia esse processo. Ele não se conformou com a aceitação pela cúpula do Partido [Comunista] de que era isso, não tinha o que fazer. A acomodação era uma coisa bem Partidão. A política, né? Chega uma hora em que o Marighella diz: “Não, isso daí não deu certo no Brasil”. Marighella entendeu o momento talvez um pouco antes dos outros. 

Recorte fílmico 

Eu sempre tive essa inquietação de entender melhor a figura do Marighella. Em 1986 eu escrevi um roteiro, primeiro roteiro, entrei na Lei Mendonça, naquela época. Fui aprovada, mas não consegui captar nenhum tostão, esse tema ainda era maldito. O tempo foi passando, comecei a ir atrás dos recursos, aquela velha história, aquele sufoco pra conseguir o dinheiro. Basicamente, a gente foi se informando melhor, porque aos poucos esse nome foi saindo da sombra, foram surgindo mais informações, mais publicações, mais livros e eu sempre tive essa pulsão de ir atrás dessas informações. 
Em nenhum momento me propus a fazer um filme jornalístico, um documento, uma pesquisa histórica, com se eu fosse uma estranha e esse tema não me dissesse respeito. Assumi como linguagem, desde o momento zero do filme, tratar como a sobrinha, uma pesquisa de uma pessoa envolvida afetivamente com aquilo. Portanto, é um recorte. O Marighella é um personagem de uma complexidade fascinante, porque você
pode olhar ele de “n” recortes. Ele atravessou e atuou em todos os momentos-chave do século 20. 
Achar material sobre o Marighella foi muito difícil. Ele nunca se deixou filmar nessa vida. Ele conseguiu passar pelo século 20 sem ter uma imagem em movimento. A única imagem em movimento do Marighella que agente achou ,seja aqui, seja em Cuba, na Rússia, na China, lugares onde ele visitou como autoridade comunista, é ele morto no Fusquinha e a câmera da TV Tupi chegando para pegar o corpo. E fotos, o que a gente conseguiu apurar são no máximo 20 e poucas, 30 fotos. Eu não tinha imagem do Marighella pra fazer um documentário longa-metragem. 
Qual era o meu recurso? Ouvir as pessoas que o conheceram nas várias etapas da vida dele. Conversei com alguns dos velhos militantes do Partidão, ainda da Bahia, no começo da militância no Partido Comunista. É um retrato filtrado pela emoção e pela memória de cada pessoa. E aí eu fiz a minha costura. É intencionalmente polifônico. É uma visão construída a partir de muitas visões. 


Totem e tabu 

Eu fui adquirindo muitos ângulos novos sobre ele, pois a minha convivência foi muito diferente. Desde sempre, ele vivia na minha casa e minha mãe sempre dizia assim: “Era tão normal ter o Marighella em casa que a gente não prestava muito a atenção. Ele fazia parte”. Todos sabiam o que estava acontecendo, meus pais também são de esquerda, mas ninguém se dava conta da repercussão. Meus pais foram do Partidão e, depois
que o Marighella saiu, eles também se desencantaram, como muita gente se desencantou, principalmente depois do golpe. Tem muita gente que saiu para vários outros partidos. Eles, meus pais, não eram militantes, nunca foram para a ilegalidade, mantinham as aparências, mas tinham um envolvimento…
Bom, só guardar o Marighella em casa, digamos que tá de bom tamanho, né? Ele podia aparecer a qualquer hora, tinha um quarto só pra ele. Depois do tiro no cinema, inclusive, ele passou muitos dias lá em casa e ficava se exercitando o tempo todo. Em 1971, dois meses antes de morrer, depois que meu pai foi preso, fomos para a Europa. Na Itália, quando estávamos andando na rua no centro de Roma, minha mãe disse “olha” e mostrou uma parede de um sindicato onde tinha alguns cartazes colados. Havia centenas deles, colados um ao lado do outro, estampando a cara do Marighella, grandona, em verde e amarelo. Isso foi muito forte para mim, por que pensei: “Meu tio na Itália, que louco”. 
E pelo tamanho do problema, eu era proibida de falar. Ninguém podia saber, a gente só foi poder falar sobre o assunto quando a minha tia voltou do exílio, em 1979, com a anistia. Nem os meus melhores amigos podiam saber do Marighella. Daí você começa a perceber a dimensão do problema. Ele era capa de todos os jornais e revistas, então o meu pai tinha medo que eu o identificasse e dissesse “olha, o meu tio!”. Ele teve de dizer pra mim “você vai ter que guardar isso como um segredo”. É uma responsabilidade grande com dez anos de idade. 
Foi um impacto horrível, eu lembro do lugar da cidade em que gente estava passando, exatamente do lugar, quando ele me contou. Ele estava me levando para escola, então comecei a chorar e voltei pra casa. Daí nunca mais vi meu tio nem minha tia, eles não apareceram mais em casa. Eles não podiam ameaçar a nossa vida. Eu era muito apegada ao Marighella e ele a mim. E é interessante notar que o Marighella tinha contatos por todos os cantos do mundo. O Miró mantinha contato, o Rosselini, o Visconti, o Godard… Surpreendeu-me o tamanho dele no mundo, que eu não imaginava. 
Perguntaram-me várias vezes enquanto eu fazia o filme: “E o outro lado, você não vai pôr? A direita, os inimigos?”. Eu falei: “Não, porque esse lado já falou por si, seja pela omissão, seja pelo assassinato, seja pela tortura, por tudo o que houve, pelos cartazes de ‘procura-se’, tudo foi dito. Eu não preciso ir atrás disso pra saber o que eles achavam. Preciso ir atrás de quem não tinha voz pra dizer o que achava”. Eu não quis ouvir o outro lado mesmo, de verdade. 

De herói a bandido, de bandido a herói 

Carlos Marighella nasceu em Salvador, Bahia, em 1911. Aos 18 anos, iniciou curso de Engenharia na Escola Politécnica da Bahia. Tornou-se militante do Partido Comunista no mesmo ano. Foi preso pela primeira vez em 1932, após escrever um poema com críticas ao interventor Juracy Magalhães, e então novamente em 1936, quando foi torturado pelo chefe da polícia Filinto Müller durante o governo de Getúlio Vargas. 
Transferindo-se para São Paulo, Marighella passou a agir em torno do combate à ditadura imposta por Vargas. Em uma terceira prisão, em 1939, foi recolhido aos presídios de Fernando de Noronha e Ilha Grande pelos seis anos seguintes, onde trabalhou com a educação cultural e política dos presidiários. Anistiado em 1945, participou do processo de redemocratização do país e reorganização do Partido Comunista na legalidade e foi eleito deputado federal pelo Estado da Bahia. 
A repressão do governo Dutra cassou o seu mandato e Marighella foi obrigado a voltar à clandestinidade em 1948. Nos anos 1950, exerceu militância ativa em São Paulo nas lutas armadas populares. 
Em 1964, Marighella enfrentou policiais do DOPS carioca, que o localizaram em um cinema no bairro da Tijuca. Confrontou os policiais com socos e gritos de protesto, recebendo um tiro à queima-roupa. Desligou-se do Partido Comunista em 1966, explicitando a disposição para lutar junto às massas. A partir de 1968, Marighella foi apontado como “Inimigo Público Número Um”, o que levou a sua morte, um ano depois, pelos agentes do DOPS sob a chefia do delegado Sérgio Paranhos Fleury. 
Alguns meses antes de morrer, escreveu o Manual do Guerrilheiro Urbano, um dos seus textos mais famosos e que se tornou uma referência para grupos de combate e resistência na Europa, África e Meio Oriente. 

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