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sexta-feira, 23 de julho de 2010

Espaço Literatura (CONTO): Num Canto Caipira



O dia amanhecera como mais um dia triste, bem característico daqueles dias de inverno de todo o interior de S. Paulo, chuvoso e frio. Mesmo assim, às sete da manhã, já lá estava Carlim chapéu fazendo ponto em seu bico desprezível; orientava os motoristas para o perfeito acondicionamento dos seus carros, como se os mesmos não soubessem estacionar. O bafo medonho de Carlim chapéu já denunciava desde cedo os vários goles de caninha barata na birosca de Manel Feijão. A roupa suja e barata reclamava a ausência de mulher caprichosa e amante; o chapéu de feltro preto, marrom de sujeira, marcado por manchas de dedo engordurado simbolizava os muitos caipiras desolados, esquecidos, marginalizados; brasileiros do interior sem trabalho, sem estudo, sem família, sem esperança. As únicas coisas que mantinham Carlim chapéu vivo eram a amizade compartilhada por um bom dedo de prosa com Zé pretinho e a inseparável caninha, a sua única e verdadeira mulher, dona de todas as suas confissões, de seus sentimentos, de suas desgraças, a única capaz de compreendê-lo.
Mesmo odiado por muitos, Carlim chapéu conseguia, logo no primeiro contato, ganhar a simpatia até dos mais mal-humorados. Nesse dia, porém, Carlim chapéu estava diferente; aparentava tristeza e desolação. Alguns desocupados que dividiam o ponto de flanelinhas diziam que tinha sido a morte de Zé pretinho, seu amigo de cachaça, a causa dos seus males.
Zé pretinho era um negrinho de meia idade, raquítico e converseiro. Costumava usar um paletó cinza roto e uma calça preta remendada bem larga. Não usava o típico chapéu de peão, mas não abria mão de seu bonezinho ensebado e fedido. Era muito amigo de Carlim chapéu, as horas e horas no bar do Manel Feijão provava a todos a amizade de muitos anos. Zé pretinho, como Carlim, trabalhava fazendo biscates; era intitulado pedreiro de marca maior, mas pela idade avançada e a cachaça combustível, já não dava conta dos serviços pesados do dia-a-dia. Na cachaça, Zé pretinho era o rei, ninguém conseguia acompanhá-lo. Carlim chapéu bem que tentava, mas quando os olhos entortavam, tomava o rumo cambaleante de seu barraco e lá ficava, sem comer, sem tomar banho, apenas dormia.
Eram amigos de boemia – será que posso chamar assim aos pobres beberrões? –, Zé pretinho após tomar todas, montava em sua bicicleta velha e enferrujada e partia pra casa fazendo zig zag, muitas das vezes dava uma caroninha pra Carlim chapéu que aceitava sem a consciência do perigo. Muitas das vezes caíam juntos, se ralavam, mas nada afetava aquela amizade estranha de porta de botequim.
Mas foi num desses dias de muita pinga que Zé pretinho deixou esse mundo desumano e injusto. Após dar o último gole na birosca de Manel Feijão, montou em sua bicicleta e partiu costurando a rua. Os morros de Jardim América transparecem medo pra qualquer um, subidas e descidas quase verticais. Foi numa dessas descidas que Zé pretinho partiu. A bicicleta sem freio, o condutor bêbado, a descida violenta, um carro em alta velocidade; Buuummm!!! Morreu de morte matadinha o Zé pretinho..., na hora!. Alguns disseram que de sua cabeça nem se viu sangue, apenas um líquido forte e transparente, pinga? Exageros a parte, Carlim chapéu, agora, estava só, restava apenas a sua caninha, a única com a missão de guiá-lo.
No dia do enterro de Zé pretinho, tive que ir ao centro da cidade resolver negócios. Estacionei meu carro com a “ajuda” de um desocupado, logo simpatizei com aquele homem maltrapilho. Foi aí que ele me disse que seu melhor amigo seria enterrado naquela tarde, seu nome, Zé pretinho.
Apesar de não ter muito tempo, resolvi, de súbito, escutar as histórias daquele homem estranho, sem ao menos conhecê-lo. Se fosse com outro qualquer, talvez recebesse um ‘não amole’, mas resolvi escutá-lo. Carlim chapéu, cachaceiro caipira, homem triste e desiludido tinha perdido o seu único e verdadeiro amigo. Unidos pela pinga, os dois se compreendiam um ao outro; no linguajar dos bêbados não havia incompreensões, apenas alegria e a vontade de esquecer muita coisa do passado.
Fiquei muito espantado com a aquela história simples de gente comum, mas o fundo de tudo aquilo era belo, dignificante e humano. A pobreza esconde surpresas das mais sem explicações e curiosas; após dar uma boa gorjeta àquele miserável, vi-o partir para outro carro, cantando, em tom de loucura, uma velha canção de peão, talvez a preferida do Zé pretinho:

Aqui nessa estrada já dexei meu rastro em vão
Ieu e meu cavalo fumos pras redondeza do capão...



- Silfra Doval, Taubaté, 17 de setembro de 2005 -

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