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sexta-feira, 30 de julho de 2010

Espaço Literatura (Conto): A Fantasia Mendiga


Sexta-feira, fim de tarde, dia do choppinho de encerramento da semana de trabalho. Dois amigos tomavam cerveja dentro de um bar popular em Caxias. Papo vai, papo vem, até que o Adelmo, depois de dezenas de histórias sem futuro, resolveu contar uma triste história pro Martinho.
– Tristeza meu amigo? Só se for do nosso coração, pois existe muita gente que passa fome pra saciar outra coisa, em outro lugar. Vou te contar uma história real, não é mentira não. A história da Dona Cacilda.
– Ô Adelmo, se for mais um papo furado é melhor não. Estou cansado de ouvir caô.
– Tá bom, mas tudo foi presenciado de verdade. Nem eu acreditava no espírito de devoção daquela velha.
– Então desembucha ôme.
– Tudo começou quando eu vendia bala no trem. Ficava pra lá e pra cá, da Central pra Japeri, de Japeri pra Central, da Central pra Santa Cruz, e assim sempre. Fiquei nessa vida por uns cinco anos; ô aninhos sofridos!!. Fiquei foi com muitas varizes nas pernas, aquelas que pareciam querer estourar de tão grande. O dinheiro que ganhava vendendo gamadinho só dava para garantir o almorço e a janta. Vivia numa pindaíba que dava dó. Acordav...
– Peraí! Você vai ficar falando da sua vida! Pensei que tinha uma história pra contar,... garçon!... Traga mais uma!
– Tá certo, vou ao que interessa – disse Adelmo se desculpando.
¬– Foi nessa época que conheci uma Dona, já velha de uns sessenta anos, que pedia esmolas em tudo que era lugar num dia só. Ficava espantado com a ligeireza da velha. Parecia até fantasma. Uma hora tava andando no trem, estendendo a mão pelancuda aos passageiros; outra tava na porta de algum banco, com a mesma mão ossuda e pelancuda; às vezes dava as caras no túnel de Campo Grande, estendia um tapete velho, que nem pra cachorro servia, e ficava lá, com a mesma mão feia. Quando saltava na Central, perto do metrô, advinha quem tava lá? Ela do mesmo jeito. Isso tudo num dia só! Fiquei intrigado com a danada da velha. Achava que a pobrezinha passava até fome. Devia não dar muito lucro a esmola nesses lugares, por isso que ela ficava pra lá e pra cá pra ganhar algum.
Foi num dia então que resolvi contribuir e puxar assunto com a velha, saber quanto ela faturava por dia. Sim!... Eu ganhava uma merreca me desgastando todo com aquele danado do gamadinho, enquanto ela no bem bom sentada, só estendendo a latinha que só vivia vazia, não acreditava que ela ganhasse menos que eu. Foi então que fiquei sabendo que se chamava Cacilda, Dona Cacilda. Morava em Santa Cruz, há muitas léguas de onde estava nós. Pedia esmolas pra sustentar os cinco netos, todos sem pai. Aí perguntei se a esmola dava boa soma por dia...
– Ê o que foi que ela disse? – perguntou Martinho arregalando seus grandes olhos.
– Nada, mudou de assunto e se despediu.
– Ê você? O que foi que fez?
– Nada, fui embora vender minha mercadoria.
– Mas!? Que diabo de história sem graça é essa?
– Calma Martinho, você é apressado hein!... Eu ainda não terminei.
– Fiquei intrigado com aquela velha, não sei por quê. Aí os dias passaram. E num dia de chuva, estando sentado na estação de Quintino, advinha quem encontrei?
– Dona Cacilda?
– Não, o Sempescoço!
– O que há de bom nisso?
– Paramos pra prosear, aí o papo adentrou no assunto da velha. Ele me disse que conhecia a Dona Cacilda, e me disse que ela é a primeira baiana da Acadêmicos de Santa Cruz...
– E daí? Não vejo nada demais nisso.
– É, mas ele me esclareceu tudinho.
– Ele me disse também que a Dona Cacilda não é mendiga não. Ela também não tem tanto neto assim não. Só tem uma filha já grande que tem dois filhos, trabalha e se sustenta. A velha tem até pensão do marido morto por bala perdida...
– Olha ô Adelmo, acho que a cerveja tá te deixando lelé. Que diabo de história sem graça é essa. E daí?
– Como e daí? Alguém que não precisa mendigar mendigaria por gostar?
– É claro que não!- Respondeu o Martinho.
– Então ôme, é tudo por amor pela escola!
– O Sempescoço me disse tudinho. Em todos os detalhes. A velha pedia esmolas para comprar a fantasia de baiana. Aí meu caro, noutro dia, no trem, encontrei a Dona Cacilda, toda com cara de jururu, como se tivesse passando fome, com aquele mesmo gesto, as mãos magras estendidas na busca de algum trocado. Antes, imaginava a felicidade da velha com o saco de feijão, de arroz, com o macarrão, com a dúzia do ovo; agora vejo outra felicidade, a do pano branco de candoblé, das lantejoulas, da purpurina, do ouriço, do samba na cabeça, da folia... Ê velha esperta. Quando se aproximou de mim, puxei outra vez conversa, já desmascarando a sonsuda. Onde já se viu, tomar lugar dos pobres que verdadeiramente passam fome! É uma degradação pra classe dos pedintes! O que o bom samaritano iria dizer ao saber que sua pequena contribuição que serviria pra encher buchos vazios estava agora era enfeitando o tecido carnavalesco de brilho? Não podia! Estava pondo em risco a atividade pedante. Isso não se faz dona!!...
– Você falou tudo isso pra ela?
– Coitada, não tinha mesmo dinheiro. Resolveu pedir honestamente. – indagou complacentemente o Martinho.
– Que nada! Tava enganando os outro de qualquer jeito... Ô Paulim, trás mais uma aí!
– Ê aí, o que foi que ela te disse depois de tudo.
– Disse com a cara bem lavada que era o último dia de mendicância. Já tinha o dinheiro pra fantasia. No mês que vem tem o seu mundo a sua espera... E eu, na época, o meu trem...
Adelmo terminou seu conto com um ar de tristeza, pois não tinha evoluído tanto assim, trabalhava junto com Martinho numa empresa de conservação. Era faxineiro. Continuava a sofrer do mesmo jeito. Martinho consolou o amigo e brindaram à felicidade dos dois; era verão, mês de fevereiro, uma semana pro carnaval. Enquanto a conversa prosseguia em outro rumo, a televisão do bar anunciava no RJ TV uma reportagem sobre Escolas de Samba; se via uma velha baiana desfilando com garbo pela quadra de sua escola, os dois não perceberam, mas alguma coisa me diz que aquela figura acabada e feliz era a Dona Cacilda.

Contos de Botequim.(Silfra Doval, Taubaté, 28 de julho de 2005).

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