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domingo, 18 de julho de 2010

Espaço Literatura: Ensaio sobre os nomes





Numa das páginas que escreveu Henry Bergson, podemos ler que “... não somos apenas os únicos animais capazes de rir, mas também os únicos capazes de fazer rir...” Ou seja, só podemos rir de nós mesmos: um chapéu amassado jamais poderia, por si próprio, suscitar o riso; o que nos faz rir, na verdade, é a forma da nossa fantasia que aquele pedaço de feltro passa a interpretar, um símbolo do histriônico ou do ridículo que possamos parecer, nós ou nosso semelhante. De maneira análoga, parece-me, os dicionários teratológicos - os impressos e os imaginados – esgotam a fonte das possibilidades da ignomínia ou da monstruosidade, porque mesmo a imaginação mais fértil não pode engendrar seres que escapem aos limites da experiência humana; por mais anomalias, abscessos ou chifres que entes paridos pelo nosso terror possam ostentar, hão sempre de postular, embora desfigurada ou caricata, a compleição humana. Daí que pareça compreensível que se acredite que o mais atroz dos nossos possíveis pesadelos esteja em algo que prefigure algo de todo desconhecido, o inominado, aquilo que foge à precedência dos fatos, que foge desse consabido mundo especular, contaminado de humanidade, contaminado de nós mesmos, construído quase instintivamente, onde anjos e demônios, que a um só tempo delimitam e unem dois extremos – o intrínseco paradoxo que persiste entre os opostos -, podem muitas vezes não passar de projeções de um ego ou de um âmago pessoal ou, miseravelmente, coletivo. E para compreender aquilo que vemos eu acrescentaria que é imprescindível nomeá-lo; entre esses dois planos, entre outros indivisíveis arcanos, é que gravitam as palavras. O simples título de um objeto não pode deixar de fazer parte de sua substância; para a concepção humana, é preciso que se equivalham. Esse vasto repertório de nomes que sabemos que, em vão, procura abranger o universo, serve para retê-lo, enumerá-lo, ordená-lo, dentro dos limites da órbita do nosso entendimento. E é sobre as palavras que pretendo refletir e, pretensamente, me demorar um pouco. As palavras. Sim. As banais palavras, mas que em cuja composição parecem coabitar componentes tão dispersos e díspares quanto um instrumento e um dom, pois, como que de um modo casual, estranhamente custodiam esse complexo entranhamento. Crátilo, personagem de um dos diálogos de Platão, registrando um sentimento comum entre os sábios de sua época, assegurou que as palavras encerravam em si mesmas algo da essência das coisas que representavam; que ao pronunciarmos a palavra árvore não estávamos apenas repetindo um simples e aleatório enunciado da nomenclatura convencionada, mas, de certo modo, transcendendo à própria composição daquele ser. Penso que quanto mais nos remontarmos no tempo mais poderemos nos deparar com essa idéia, e que a disjunção entre o que hoje a gramática chama de significante e significado deu-se muito depois, com a invenção, ou descoberta, da escrita, ou dos mecanismos da lógica exata. Assim é que para os antigos, como ainda hoje para os povos que desconhecem a escrita, as palavras eram entidades em si mesmas; não havia, por exemplo, a noção de um deus do mar, o som da palavra mar era o próprio Mar, que por sua vez era o ser, o deus Mar, assim como para o Vento, o Sono, a Melancolia. Em toda sentença em que se procura cunhar um pensamento de caráter poético ou filosófico, subjetivo portanto, é natural que os substantivos e as formas verbais que compõem o tema, sejam concebidos em sua forma geral. Mas houve aqueles que entenderam que a intuição de Platão continha o absurdo pueril de sugerir, por exemplo, que o desenho da palavra hippus denotasse, como na escrita ideográfica, as formas anatômicas do cavalo. Muitos ignaros, para combatê-la, estendem essa opinião às recentes línguas derivadas do indo-europeu e à escrita, o que parece dar-lhe forma e aplicação, mas que na verdade, apenas a torna um corpo de prova para que mais facilmente seja refutada.
Em Roma, a capital do antigo império, entre os segredos que comportaram sua mitologia ou sua religião – que hoje para nós não deixam de ser a mesma coisa - constava o de que a cidade possuía um nome oculto, e uma esquecida crônica conta que um tal cavaleiro, Valério Sorano, caiu em desgraça por tê-lo revelado. Um famoso e prolífico( escreveu mais de cinqüenta livros) místico sueco, que foi célebre por seu trabalho científico como engenheiro bélico e biólogo na côrte de Carlos IX, o da Carlíada de Voltaire, assegurou que em um de seus transes, em que perambulou por regiões sublimes e por fétidos orbes inferiores, foi-lhe dado saber, entre outras coisas, que todas as pessoas possuem um nome secreto, e que as almas que no post-mortem esquecem os seus, são almas perdidas, não se lembrarão quem foram nem quem são, estarão condenadas ao esquecimento e à extinção. Na religião muçulmana é corrente a lembrança de que o profeta afirmou que Allah possuía cem nomes, dos quais noventa e nove eram conhecidos dos homens, mas que havia um que nunca se saberá. Na Bíblia podemos encontrar como sendo a ameaça de uma punição capital quando lemos “...e toda a maldição dita aqui jazerá sobre ele; e o Senhor apagará o seu nome de debaixo do céu ”( Deuteronômio 29,20 ). Em todas as épocas, os bruxos – que pulularam em nossas fábulas até perderem o sentido - para maior eficácia de seus sortilégios, inserem os nomes das vítimas em seus feitiços, que levam entre seus ingredientes pronúncias mágicas. Parece-me que ainda hoje levamos conosco algo desse estigma, quando, por exemplo, não admitimos que certas palavras sejam associadas ao nosso nome, ou quando, como se quiséssemos evitá-lo (ou como um inconsciente escrúpulo, por falar de alguém que não pode se manifestar, embora nos possa ouvir), afetamos uma espécie de cerimônia ao pronunciarmos o nome dos mortos.
Jean Jacques Rousseau, mesmo em pleno fulgor do iluminismo racionalista, de que foi arauto incansável, e sofrido, acreditou que nossas necessidades corporais, ao contrário do que se pensava e que se podia imaginar, jamais poderiam ter gerado a linguagem. Em um ensaio brilhante propôs que os homens primitivos, para afugentar a sede, o frio e as feras, podem ter-se reunido, solidários, à beira da fonte e do fogo, mas continuariam assim, como os lobos, entre gestos e grunhidos, a perpetuar a cada geração o mesmo instinto de sobrevivência, de modo que o que nos fez realmente falar foram nossas paixões, isto é, a suspeita de que o espelho d`água pudesse também estar refletindo um rosto cuja alma era a parte sensível que nos faltava para compartir e ajudar a entender o amor, a solidão, a esperança ou o temor ( Essai sur l`Origine des Langues, Montlouis, 1759). Em outro capítulo dessa história, o poeta e pintor genebrino Giorgio de Burgos entendeu que as línguas eram atributos tão superiores e complexos, que cada idioma era, em si, uma das variantes deste mundo; dizer tanatus, verbi gratia, era uma das formas de ver a morte. De aspecto semelhante, embora com mais labor e menos candura, foi a teoria dos ídolos, pensada, trezentos anos antes, por Francis Bacon, onde as palavras, as próprias gastas palavras – os idola fore –, contaminavam de dubialidade os caminhos do discurso em busca da verdade, já que cada palavra teria um significado diverso para cada interlocutor, conforme seus interesses, sua ética, sua experiência individual, sua índole, etc. ou a dos rabinos que propuseram, no século XVI, a tese cabalista de haver, num texto sagrado, tantas interpretações quanto leitores o houvessem lido.
Num dos seus contos, Jorge Luiz Borges de certo modo aludiu à velha sentença de Protágoras, de que o homem - nesse caso de forma bem pragmática - é a medida de todas as coisas, quando sugeriu que os homens modernos habitam um espaço onde tudo remete às formas ou as necessidades humanas, onde tudo são extensões de seu corpo ou de sua imaginação, “...uma poltrona pressupõe o corpo humano, suas articulações e partes; a tesoura, a pinça do indicador e o polegar, o ato de cortar,...”(There are More Things, El Libro de Arena, p. 40); por outro lado não podemos conceber um espaço ocupado por objetos completamente desconhecidos ou dissímeis, ou que, no mínimo, mesmo a nossa fantasia, respaldada por experiências anteriores, não possa abarcar ou aduzir; isto é, para vermos uma coisa é preciso compreendê-la e para compreendê-la, é necessário nomeá-la. No catálogo clínico das espécies de cegueira, há um tipo curioso, chamado Agnosia, que não priva o paciente da visão dos objetos, mas o priva da capacidade de reconhecê-los, distingui-los e relacionar, o que o torna tão cego quanto os outros cegos comuns.
O nosso João Guimarães Rosa, que parece ter perseguido os passos de James Joyce no quesito da experiência lingüística, numa de suas pesquisas de campo, onde coletava material para seus densos livros, certa vez ficou intrigado ao descobrir que uma espécie de planta com folhas macias e aveludadas, era chamada pelos índios daquela região de Velvo; lembrando-se que velvet significa veludo em inglês, e imaginando que aquela era uma estranha coincidência, lembrou-se do que havia dito Platão.
Hoje sabemos, está aí o auxílio dos instrumentos fonoaudiólogos, que quando se diz a palavra Eu, por exemplo, em todas as línguas estudadas ( ego, yo, I, Io, je, etc.), o som permanece em torno da nossa boca, e quando se diz Tu, o som vai em direção de nosso interlocutor. De maneira semelhante, as expressões no passado parecem se voltar para trás da cabeça, e as do particípio, inflexionarem-se para dentro. É clássico o exemplo dos índios das ilhas Marquesas – os mesmos que, nos anos mil e oitocentos, impressionados com a história de Joana D’Arc, inquiriram a seu tutor, um padre da companhia de Jesus, até que ponto podia chegar a perversidade dos homens, pois não entenderam como poderiam ter martirizado e queimado uma pessoa sem que fosse para comê-la - cuja linguagem dá às cores Azul e Verde o mesmo nome: ou eles não fazem caso dessa distinção, ou sua estrutura lingüística não as discrimina. Temos ainda o caso dos esquimós do Alasca, que dão à neve mais de vinte nomes diferentes, conforme o uso ou o tipo.
A lingüística moderna estranhamente, talvez inspirada no método empirista, que, cansado dos erros anteriores, não admite supor a mais óbvia das premissas – ou, quem sabe, para não ter que quebrar a cabeça - atribui às palavras uma pobre origem chinfrim e aleatória. É a alegórica tese do Gêneses, onde Adão batiza todos os seres. Seus discípulos parecem não suspeitar que essa lógica contém a insustentável tese de que a linguagem nada mais possa ser que um sistema de símbolos arbitrários, é como se, sem conjeturar sobre a parcialidade do nosso conhecimento, cometessem o desatino de asseverar que os léxicos e os dicionários são anteriores aos idiomas que englobam ou tentam englobar.

Ricardo M P Nunes, Jan’05.

Um comentário:

  1. Dotado de um seleto linguajar, o autor de "O ensaio sobre os nomes" trabalha o passado e o presente com um profundo conhecimento filosófico e empírico. A leitura de cada parágrafo é um convite a pura reflexão. Parabéns Ricardo.

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