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domingo, 10 de outubro de 2010

Espaço Conto: Dia de Eleição

Sábado, véspera de eleição, é dia de decisão no Maracanã. Fluminense e Botafogo disputarão mais uma decisão; decidirão o título da Taça Guanabara. Como um bom torcedor, dedicado e fiel, seu Julinho de Menezes, botafoguense dos mais supersticiosos, dias antes, já preparava sua camisa, sua bandeira e seu ingresso de arquibancada. Morador de Senador Camará, o velho torcedor, já com seus cinqüenta e nove anos, quase sessenta, não perdia o prazer de assistir aos jogos de seu time do coração. Tudo já estava pronto. Até a oração de São Benedito tinha que estar em local apropriado – dentro do bolso esquerdo de sua calça de tergal preta; nem muito ao fundo, nem muito superficial. Estratégia infalível, dizia o Seu Julinho, contra qualquer esquema tático.
Seu Julinho, devido às várias décadas vividas, sabia de muitas histórias dentro e fora de campo. Cada adversário do seu time, se já o houvesse enfrentado antes, sabia de cor e salteado todos os detalhes do último confronto; quantos gols marcados, quem os marcou, a pontuação na tabela, até o número exato de cartões sabia de cor. Memória espetacular. Os amigos o admiravam muito. Mesa redonda que se preze não podia ser sem a presença do Seu Julinho. Esperava-o, lá, o vascaíno, o flamenguista, o tricolor, o americano, até torcedor do Bangu tinha representante no bate-papo da praçinha do bairro. Agora, Seu Julinho de Menezes se preparava para mais um clássico no Maraca; a decisão da Taça Guanabara.
As eleições de domingo anteciparam a rodada dos campeonatos do fim de semana em todos os Estados do Brasil. A democracia iria ser exercida nas eleições para Governador do Estado. No Rio de janeiro, segundo as pesquisas, dois candidatos estavam empatados tecnicamente; um era o Antero Carlos, candidato de direita, filho de um político de longa data, declarado flamenguista desde a infância, o outro era o Delfim Cardoso, candidato de esquerda, com larga experiência em mandatos políticos, era tricolor doente. Se não houvesse a antecipação dos jogos do fim de semana para o sábado, e a maçada da propaganda eleitoral gratuita, muita gente nem lembraria das eleições de domingo. Seu Julinho pensava também assim. ‘Mas que absurdo! Decisão da Taça Guanabara num sábado’ – dizia pra si o velho Julinho, quando o Arnaldo, barbeiro do bairro, fazia a sua barba.
E chegou o grande dia! Das eleições? Claro que não. Do jogo! O jogo estava previsto para as dezessete horas, já as treze Seu Julinho se preparava pra sair de casa. Fez uma conferência em todos os detalhes antes de sair: A calça meticulosamente passada, já com a oração de São Benedito no bolso, estava perfeita; a camisa, símbolo maior de paixão pelo time do coração, estava maravilhosa, as cores, preta e branca, estavam bem vivas. A bandeira, pronta para ser desfraldada. O ingresso de arquibancada dentro da carteira recebia mais atenção. O velho rádio de pilha, com pilhas novas, já sintonizado na rádio Tupi. Era a espera pela voz poderosa de Jorge Curi. Tudo pronto, e lá partiu Seu Julinho para a estação de trem de Senador Camará.
Já na estação, após passagem pelo buraco do muro, seu Julinho aguardava ansioso o trem parador que viria de Santa Cruz. Após a demora de alguns minutos angustiantes, o trem surgiu no horizonte. Estava muito cheio. Os vários torcedores de agremiações diferentes se misturavam em busca de um lugar mais cômodo dentro da composição, numa confusão de cores, estaturas e comportamentos. E lá embarcou o Seu Julinho, com destino final à estação de Derby Club.
Ao subir a rampa do maior estádio de futebol do mundo, a emoção tomou conta do coração do velho botafoguense. Não era a primeira, nem seria a última vez que pisava no Maracanã, mas estava ali, como se as outras vezes fossem a complementação daquele dia, eternas emoções que só o futebol é capaz de proporcionar ao espírito do brasileiro.
Maracanã lotado, mais de oitenta mil pagantes prestigiavam o clássico vovô. A guerra de bandeiras das torcidas fantasiava ainda mais o espetáculo. O jogo começa e termina. O coração acelera e desacelera. O sol nasce e se põe. O espetáculo acaba e o gosto de vitória dos vencedores dura eternamente no inconsciente. Já para os perdedores, mais alguns minutos de gozações e lamentações. A vida prossegue com o sabor das vitórias guardadas sabe lá onde, e o gosto amargo da perda que dura pouco, até o próximo desafio.
Seu Julinho, como milhares de torcedores do botafogo, sente a sensação da derrota. Não foi o campeão da Taça Guanabara. A tristeza durante a semana será característica do experiente e tão inexperiente torcedor. O trem lotado da volta o angustiou ainda mais. Pensou no precário sistema de transportes do Rio, mas logo voltou pensamento pro jogo. Como ficaria o Botafogo?
No outro dia, Seu Julinho acordou tarde. Desanimado. Cansado. Não lembrou que era dia de eleições. Depois de lembrado, não tinha ânimo de sair de casa; era gozação certa. Como podia optar em votar ou não, resolveu não fazê-lo.
Os jornais de segunda-feira anunciavam que o candidato Antero Carlos vencera as eleições com ampla vantagem. O número de votos brancos e nulos excedia por mil o número de pagantes no clássico no Maracanã.



(Silfra Doval, Taubaté, 17 de julho de 2005).

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