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sábado, 2 de outubro de 2010

Espaço Conto: Dia de Soldado

Desde menino, Severino da Silva sonhava em ser um grandão no exército, como dizia sua simples e amada mãe. Nos tempos de roça, quando trabalhava com seu pai, de enxada na mão, nas plantações de aipim, batata e feijão, admirava aqueles que conseguiam usar farda. Não sabia ao certo a hierarquia do exército. Raramente quando ia ao centro da pequena cidadezinha de Mocó do Sul, bastava uma farda qualquer pra imaginar qual o posto sustentava aquela garbosa autoridade. Pensava, às vezes,... “Aquele lá deve ser um sargento”... ou “Aquele outro um danado dum Cabo”, quando aparentava ser de mais idade, arriscava um posto de coronel ou então de um capitão dos mais bravos.
Severino sonhava em ser soldado. Imaginava o que diria Rosinha ao vê-lo todo de verde, de peito estufado, de farda limpa e passada, de rosto barbeado, os cabelos cortados e penteados. Nada lembraria o capiau maltrapilho, de calças remendadas, o chapéu de palha velho e sujo, os cabelos grandes e sebosos. Seria outro homem, íntegro, educado, forte, limpo, defensor da bandeira de seu país, sabedor de tudo o que era arma. Seria um danado, um exemplo para a sua família. Seu pai concordava com o sonho do filho. Achava que todo homem moço deveria ser soldado, aprender a matar e a se defender. Achava, também, que a vida na roça não traria futuro pro filho, queria vê-lo progredir na vida. E foi assim mesmo que aconteceu...
Severino saiu de casa, muito jovem, antes mesmo de completar seus dezoito anos, foi pra cidade estudar. Em Mocotó do Sul, passou a viver em um pobre cortiço, junto com outros colegas de quarto. Alguns de seus amigos tinham o mesmo sonho de Severino, seguir carreira nas Forças Armadas.
Foi assim que o humilde Severino terminou seus estudos – diga-se de passagem, com muito boas notas – e aos dezoitos anos, se alistou num quartel de Infantaria do Exército. Depois de duas semanas na caserna, Severino recebeu a sua primeira muda de farda. Estava orgulhoso e resolveu que na primeira folga dos recrutas iria pra sua casa fardado. Foi uma festa na fazenda de seu Sebastião. O pai orgulhoso e contente mandou matar um porco dos mais roliços pra festejar a chegada do filho importante. Dizia ingenuamente aos seus amigos de roça: “Zefinho é um danado, mal entrou pro quartel, já é recruta!”. A chegada não poderia ter sido mais triunfal, Severino todo penteado, limpo, barba feita e com aquela farda de respeito foi cercado por todos e foi recebido com muitos abraços e beijos. A festa foi longa e rolou pela noite adentro...
Naquela mesma noite, Severino desejava se encontrar com Rosinha, seu grande amor, mas qual foi seu desapontamento ao saber que a cabrocha estava prenha de um matuto sem futuro, chamado Florêncio. A dor foi grande, mas logo deixou de lado a rapariga desafortunada.
Depois de um ano na caserna, Severino já tinha se especializado nos melhores cursos técnicos de Mocó do Sul. Era datilógrafo, sabia muita coisa de eletricidade, e também, entendia de manutenção de automóveis. Aguardava ansioso a promoção de cabo, mas começou a perceber que as coisas não eram tão simples assim. O Mesquita, um soldado relaxado e sem futuro, tinha sido promovido a cabo na sua frente. O Ramos, soldado brabo e brigão, também tinha sido promovido– alguns diziam que sua irmã era o prato predileto de um tenente raquítico que comandava o 2º Pelotão. Pra piorar a história toda, o sargento Freitas – braço direito de seu comandante – não gostava de Severino. Severino desconhecia os motivos, mas suspeitava que fosse algo pessoal. Ele, então, foi percebendo que dentro de um quartel você só vale as divisas que sustenta. Nada mais...
Passaram-se três anos e Severino já era um dos soldados mais antigos de seu Pelotão. O desgosto e a desilusão já tinham tomado todo o seu espírito. E a promoção? Sabia que enquanto não tivesse nada pra oferecer a algum xibungo, não conseguiria a divisa de cabo. Já não era aquele soldado exemplar, já não cumpria com esmero suas atribuições. Mas nunca deixara falta, sua educação moral não permitia esse tipo de comportamento.
Com a desilusão da caserna, Severino começou a sentir saudades de sua terra, de sua pequena fazenda. Percebeu que seu mundo nunca fora aquele, mundo hostil, injusto. Seu mundo era o mundo da roça, dos bois, da luz da lamparina, das necessidades no mato, da mula jurema, da pinga pro batismo de homem, dos banhos nos rios, da palavra falada. Isso não existia no exército e muito menos na cidade de Mocó do Sul, que apesar de pequena, já possuía ritmo de cidade grande. O que existia ali era a falsidade e a falta de valores morais; valores imprescindíveis na construção de um país forte e soberano. Mesmo até em momentos como o hasteamento da bandeira – evento dos mais nobres de uma corporação –, flagrou momentos de estado de espírito sem nenhum sentido: Os soldados na posição de sentido e apresentando armas (posição sublime, garbosa, respeitadora ao símbolo maior de uma nação, a bandeira) mantinham-se nessa posição sem nenhuma convicção nos seus olhos, um fingimento dos mais descarados, um gesto sem sentido e sem valor. Percebeu essa prática até em oficiais. Encenações de atores medíocres diante de uma platéia, e como mercenários no fundo de si mesmos. Antes mesmo que Severino também caísse naquela atmosfera inconsciente, sem sentido algum, antes mesmo que se acostumasse a trair a Pátria amada, resolveu pedir baixa. Nunca mais usar farda. Seus valores estavam se corrompendo naquela atmosfera mesquinha e oportunista.
Apesar de tudo, alguma coisa a vida na caserna tinha ensinado a Severino. Aprendeu que usar farda não significava patriotismo, muito menos amor à Pátria. Aprendeu que os seus valores de família eram muito mais superiores que qualquer outro. Aprendeu que poderia contribuir para o engrandecimento do seu país de outra maneira; cultuando os seus valores, transmitindo para os seus filhos as lições aprendidas. Convenceu-se ainda mais a respeitar a opinião dos outros sem julgar pelas aparências, muito menos pelo posto ou graduação.
Severino agora estava livre e feliz. Voltou pra casa realizado, pois o exército tinha lhe ensinado muitas coisas.
Depois de abraçar o pai, pegou uma velha enxada num canto da parede e seguiu em direção à roça de feijão. Não queria perder mais tempo algum.

(Por Silfra Doval)

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