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segunda-feira, 5 de março de 2012

A MORTE E A MORTE DE QUINCAS BERRO D'ÁGUA


Melhor do que falar em Jorge Amado é ler as suas maravilhosas obras, como: ‘Dona Flor e Seus Dois Maridos’, ‘Jubiabá’, ‘Capitães da Areia’, ‘Tenda dos Milagres’, ‘A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua’ e muitas outras.
Jorge Amado buscou divulgar a sua ideologia política – o socialismo – através de um romantismo nativo, saudoso, misterioso e que soube poetizar com bastante propriedade e talento os rituais religiosos, como o Candomblé, a sujeira da pobreza proveniente da ralé, reflexos de ranços de uma feroz disputa de classes de uma sociedade desequilibrada pela lei do mais forte, o rico.
É assim que surgem as putas, os vagabundos, caixeiros viajantes, meninos abandonados, mulheres mal-amadas, coronéis com os bolsos repletos de dinheiro, capoeiristas, cachaceiros. Enfim, toda a malta dos cantos da Bahia unidos por sonhos, ideologias, heroísmos, e, por vezes, aliás, quase sempre, por uma ética proveniente de suas próprias desgraças.
Foi assim que Jorge Amado conquistou o Brasil e o Mundo.
Nesses últimos dias reli a novela “A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua” que por sinal é uma obra em que, se a ideologia socialista não é tão marcante, a crítica à divisão de classes é bem contundente.
Fica claro que a pobreza e a desgraça do mundo de Cabo Martin, Curió, Pé-de-vento, Negro Pastinha, Quitéria do Olho Arregalado e do próprio Quincas fazem parte da própria essência das personagens, como se elas não existissem fora do ambiente sórdido dos castelos, dos becos e dos botequins. Além disso, toda a obra respira e divaga numa atmosfera embriagante, como se todos estivessem bêbados, ou, encantados pelos mistérios e pela magia do Candomblé, aliás, tudo é deboche do próprio Quincas que mesmo morto xinga, critica e farreia com os seus amigos ébrios. Todos acham que ele ainda vive, ou que, pelo menos, descansa de um porre daqueles.
Fantástica, gostosa, inquietante obra de Jorge Amado que completa 100 anos neste ano.
Salve Jorge Amado!

Quincas, representado pelo ator Paulo José no filme sob direção de Sérgio Machado


Trecho em que Joaquim Soares da Cunha se torna ‘Quincas Berro Dágua’ em “A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua”:

“Os jogadores de porrinha, de ronda, de sete-e-meio suspendiam as emocionantes partidas, desinteressados dos lucros, apatetados. Não era Berro Dágua o seu indiscutido chefe? Caía sobre eles a sombra da tarde como luto fechado. Nos bares, nos botequins, no balcão das vendas e armazéns, onde quer que se bebesse cachaça, imperou a tristeza e a consumação era por conta da perda irremediável. Quem sabia melhor beber do que ele, jamais completamente alterado, tanto mais lúcido e brilhante quanto mais aguardente emborcava? Capaz como ninguém de adivinhar a marca, a procedência das pingas mais diversas, conhecendo-lhes todas as nuanças de cor, de gosto e de perfume. Há quantos anos não tocava em água? Desde aquele dia em que passou a ser chamado Berro Dágua.
Não que seja fato memorável ou excitante história. Mas vale a pena contar o caso pois foi a partir desse distante dia que a alcunha de berro dágua incorporou-se definitivamente ao nome de Quincas. Entrara ele na venda de Lopez, simpático espanhol, na parte externa do Mercado. Freguês habitual, conquistara o direito de servir-se sem auxílio do empregado. Sobre o balcão viu uma garrafa, transbordando de límpida cachaça, transparente, perfeita. Encheu um copo, cuspiu para limpar a boca, virou-o de uma vez. E um berro inumano cortou a placidez da manhã no Mercado, abalando o próprio Elevador Lacerda em seus profundos alicerces. O grito de um animal ferido de morte, de um homem traído e desgraçado:


– Águuuuua!

Imundo, asqueroso espanhol de má fama! Corria gente de todos os lados, alguém estava sendo com certeza assassinado, os fregueses da venda riam às gargalhadas. Oberro dágua de Quincas logo se espalhou como anedota, do Mercado ao Pelourinho, do largo das Sete Portas ao Dique, da Calçada a Itapoã. Quincas Berro Dágua ficou ele sendo desde então, e Quitéria do Olho Arregalado, nos momentos de maior ternura, dizia-lhe Berrito por entre os dentes mordedores.”

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