O Botafogo de Futebol e
Regatas é o clube de futebol do Brasil cuja história é confundida com a
história e com os títulos da seleção brasileira. Talvez seja o mais tradicional
clube de futebol do Brasil.
Estou escrevendo isso
não é porque sou Botafogo. São os fatos. É a história que diz.
Se eu fosse Vasco,
Fluminense, América ou Bangu, talvez, tivesse a mesma opinião.
O Botafogo, ainda, é o
clube que mais cedeu jogadores à seleção brasileira de futebol. Se não levarmos
em consideração os títulos de 1994 e 2002 (formado por maioria de jogadores que
atuavam em clubes estrangeiros), nas três conquistas do Brasil (1958, 1962 e
1970), a maioria dos jogadores pertenciam ao Botafogo.
Falar de Botafogo é
falar do Brasil. E quem fala mal do Botafogo, sem o ódio característico, sabe
da importância do clube no futebol brasileiro.
Nelson Rodrigues, que
completa 100 anos neste ano, era tricolor. Escreveu muita coisa sobre o
Botafogo, pois presenciou o período áureo do clube.
Uma de suas crônicas
foi a respeito da decisão do estadual de 1957, entre Fluminense e Botafogo.
Logo depois do jogo – antológicos 6 x 2 para o Botafogo –, escreveu uma crônica esportiva sobre Carlito Rocha, intitulada
“O Deus de Carlito”, que dias antes da final afirmara à imprensa carioca sobre
a visão que tiveram com Deus: Deus o havia confessado que o Botafogo seria
campeão em cima do Fluminense!
Se hoje em dia a
superstição acompanha o Botafogo na sua história, deve-se a Carlito Rocha, um
homem que uniu a fé à superstição e transformou o Botafogo no clube mais
místico de todo o Brasil.
Hoje, o Botafogo
respira superstição, seja numa camisa que supostamente “deu” e “dá sorte”, seja
no alijamento das tradicionais meias cinza – alguns afirmam que as meias cinza
dão azar – ou simplesmente comprovar através de “estudos científicos” que a
camisa 7 traz sorte mesmo.
E o que dizer do
cachorro Biriba, imortalizado por Carlito como um símbolo, até hoje, do
Botafogo?
Seja por isto ou
aquilo, a superstição é marca do Botafogo. E isso é graças a Carlito Rocha, uma
figura lendária, folclórica.
Nas palavras de Ruy
Castro, Carlito Rocha foi de tudo no
Botafogo a partir dos anos 20: jogador, treinador, diretor, presidente,
capelão, nutricionista, guia espiritual e quantas outras funções pudessem
existir. O Folclore a seu respeito é o mais rico do futebol brasileiro e talvez
o único de que se possa dizer que era tudo verdade. Suas histórias eram
contadas às gargalhadas na varanda da sede. Uma delas, a de um amistoso do
Botafogo na década de 30, em que, por ingenuidade do adversário, Carlito foi o
árbitro.
O
jogo estava 0 X 0, duríssimo e já no fim. Uma bola saçaricou na pequena área do
outro time e ninguém do Botafogo apareceu para chutá-la. Pois Carlito, de apito
na boca, não hesitou: encheu o pé, mandou-a para o fundo das redes e correu
para o centro do campo, validando seu próprio gol. Os inimigos o cercaram e Carlito
saiu-se com a maravilhosa explicação: “O gol valeu. O juiz é ponto neutro.”
Os imortais, Carlito Rocha e o cachorro Biriba. |
A crônica “O Deus de
Carlito” de Nelson Rodrigues é sensacional. Ficou arquivado nos anais da
história da imprensa esportiva e do futebol.
Nelson soube dosar as
palavras ao descrever um episódio antológico que suplantou a própria decisão.
É com imenso prazer que reproduzo aqui no blog o texto, “O Deus de Carlito”:
Chegou, enfim, o momento de fazer de Carlito Rocha o meu personagem da semana. Quer queiram, quer não, ele está atrelado ao fabuloso triunfo alvinegro sobre o Fluminense.* E aqui pergunto: — qual teria sido a contribuição carlitiana para o título? Eu próprio respondo: — Carlito ligou o jogo ao sobrenatural, pôs Deus ao lado do Botafogo e mais do que isso: — pôs Deus contra o Fluminense.
E, com efeito, três ou quatro dias antes do clássico, um jornalista foi provocar o velho Rocha. Ora, Carlito nunca teve meias medidas, nunca. Bastaram duas ou três perguntas estimulantes para que, dentro dele, rugisse a imortal paixão botafoguense. Em vez de soltar declarações convencionais, o homem abriu a alma de par em par. Contou, entre outras coisas, que vira e ouvira Deus. É raro, muito raro, que venha alguém a público confessar uma visão. Geralmente, temos vergonha e, mais do que isso, medo das nossas visões. E, antes de mais nada, cumpre reconhecer a coragem de Carlito Rocha. Disse ele que Deus viera anunciar-lhe a vitória do Botafogo.
Um vaticínio divino é algo mais que um palpite de esquina. E, no entanto, vejam vocês, nem o jornal que publicou a reportagem, nem o leitor, nem a torcida, ninguém acreditou, nem em Carlito, nem na visão, nem mesmo em Deus. As declarações do velho Rocha, tão honestas e incisivas, pareceram a nós, impotentes da fé, uma simples e cruel piada do jornal. E um amigo, pó-de-arroz como eu, Carlito Rocha era ex-presidente e, de certa forma, símbolo do Botafogo. veio perguntar-me:
— Viste o Deus de Carlito?
Eu não tinha visto o jornal, ainda. Mas as palavras do meu amigo ficaram ressoantes em mim: — “Deus de Carlito!”. E, subitamente, eu compreendia o seguinte: — não há um Deus geral, não há um Deus de todos, não há um Deus para todos. O que existe, sim, é o Deus de cada um, um Deus para cada um. Por outras palavras: — um Deus de Carlito, um Deus do leitor, um Deus meu e assim por diante. Ao falar, com um esgar de pouco-caso, no “Deus de Carlito”, o meu amigo anunciava uma verdade, sem querer. Eu imagino que, até o dia da batalha, tenham dito o diabo do velho Rocha. Riam dele, de alto a baixo. Pobres de nós, que não sabemos respeitar as grandes paixões! E ninguém queria perceber o que era óbvio: — graças a Carlito, criava-se uma relação entre o Botafogo e o sobrenatural, e o clássico decisivo passava a adquirir um pouco de eternidade.
Vem o jogo. Com a nossa obtusidade de ateus, tínhamos da batalha uma visão crassamente realista. Só cuidávamos dos aspectos técnicos, táticos e físicos. Eu próprio vivia perguntando, a um e outro, na minha aflição de pó-de-arroz: — “O Leo joga? O Leo não joga?”. Em suma: — pensava em Leo, em Pinheiro, em Cacá, ou Valdo, mas não chamava o “meu” Deus. Ao passo que o velho Rocha é sábio quando acrescenta a qualquer pelada do Botafogo a dimensão de sua fé.
Eu não vi, nem ouvi, durante toda a semana do jogo, um tricolor falar em Deus. E por quê? Pelo seguinte: — achamos que Deus não se interessa por futebol! Portanto, nós o excluímos das atribuições da nossa torcida. Domingo, nunca houve um clube tão sem Deus como o Fluminense. Ora, nenhum brasileiro consegue ser nada, no futebol ou fora dele, sem a sua medalhinha de pescoço, sem os seus santos, as suas promessas e, numa palavra, sem o seu Deus pessoal e intransferível. É esse místico arsenal que explica as vitórias esmagadoras.
Por tantos motivos, eu acredito, piamente, na contribuição de Carlito para o perfeito, o irretocável triunfo alvinegro. E, de resto, como não gostar do Deus do velho Rocha? Deus tão cordial, íntimo, terno, que se incorporou à torcida botafoguense, que viveu com a torcida botafoguense aqueles eternos noventa minutos! Enquanto nós não tivemos nada, não tivemos ninguém. Mais esperto, o Flamengo entretém as suas relações com o sobrenatural, através de são Judas Tadeu. E quanto a Carlito, ninguém merece tanto como ele, agora, o título de meu personagem da semana.
Nelson Rodrigues
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