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quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Espaço Literatura (Conto): O Aposentado


Quando se passa dos cinqüenta, as coisas tendem sempre a piorar. Uma dorzinha a mais pra dificultar, os cabelos brancos pra disfarçar, os gastos com remédios caríssimos, a mesada recebida pelo INSS e o mais triste de todos, o tratamento marginal indiferente recebido pela sociedade. E por falar em mau tratamento, começa desde a hora do despertar – pois nós idosos dormimos pouco – e já existirá alguém pra reclamar ou se for boa praça criticar: ‘Por que velho acorda tão cedo!’, ‘Lá vai aquele velho chato varrer a calçada’, ‘Ô menino, tá com mania de velho, acordando tão cedo!’. Depois vêm as outras horas do dia. Na hora do almoço, por exemplo, a comida tem que ser especial, sem sal, sem gordura, muita salada. Aquela comidinha chata, rica em nutrientes que ninguém gosta de comer e quem não come, também não gosta de preparar. Ainda no seio familiar, tem aqueles momentos em que o velho põe em prática sua experiência de vida, prevendo todas as situações que antes já passara. Se for bom, consente com um sorriso de dentes falsos. Se for problema na certa, se intromete no assunto e toma aquela patada do filho, da filha, do neto... Vida de velho é assim mesmo. Todos nos tratam como se fôssemos um traste velho. Nem os nossos filhos se interessam mais. Querem é viver as suas vidas, gozá-las como nós gozamos as nossas quando jovens. Velhice pro jovem é a morte de tudo; da alegria, da beleza, da saúde, da lucidez. Alguns pontos até concordo, outros, porém, não. Velho tem que ter direito aos poucos dias de vida que ainda lhe restam. Tem o direito de entrar nos coletivos sem mostrar a carteira de idoso. Por falar nisso, uma vez, eu estava sentado num coletivo, quando o motorista parou num ponto. Subiu um senhor que aparentava ter uns, digamos, noventa anos. Quase não conseguia andar. O motorista, porém, não deixou o pobre velho seguir viagem, simplesmente porque não tinha a maldita carteirinha! Coisa que não prova nada. Onde já se viu, papel novo com poucos dias de tintura e fabricação ter mais valor que a pele murcha e acabada de um velho com mais de cinqüenta anos!
O velho fica mais velho quando se aposenta. Êta palavrinha definhadora! Quando se é ainda jovem, já aposentado, procura-se no sujeito algo que denuncie algumas décadas a mais. Alguém preconceituoso dirá: ‘Nossa..., você viu aquele velho com cara de novo... Inteirinho!’ Mas quando se faz cinqüenta, e se já for aposentado, só faltará a lápide para se sepultar de vez. Se ainda trabalhar, será motivo de reclamação de muita gente. O colega de escritório dirá: ‘Não liga não, ele já está gagá’, ou então: ‘Seu Claudecir tá demorando muito, ô tranqueira de velho!’ Assim prosseguirá o velho, guardando para si a sapiência dos anos, os mistérios das enrascadas da vida, do amor, da política, a experiência no contato com as pessoas, que de tão frustrada, se convence que não convence a mais ninguém. E pra quê tudo isso? Pra nada! Ninguém quer saber de história de velho, aliás, os únicos ainda que se animam a escutá-las são os netinhos de pequena idade para depois poderem desfrutar das balas e doces conseguidos do dinheiro dado. O jovem não escuta mais aos velhos, como não escuta, também, os discos de vinil encalhados no quarto da bagunça.
O sofrimento não pára por aí. Na fila do ônibus, por exemplo, se a porta da frente for aberta antes da de trás, onde entram os passageiros pagantes, ouvirá sempre alguém dizer, mesmo se for com os olhos: ‘Mas já acabou os assentos, tudo culpa desses velhos inúteis!’ Posso até estar exagerando, mas tenho razão, pois jogo no mesmo time, e só sou respeitado, quando não dou trabalho pra ninguém.
Hoje em dia a preocupação com o idoso é constante. Será mesmo? Nos bancos, existe aquele caixa preferencial, um apenas. Bom? A fila desse caixa fica maior do que a do caixa para os jovens. É muito velho na fila – Tenho lá minhas dúvidas quando se falam que o Brasil é um país de jovens –. E o que mudou em tudo isso? Nada. Apenas ficamos mais e mais discriminados. Preferiria encarar a fila dos normais, pelo menos ninguém, talvez, percebesse a presença de um velho de pernas cheias de varizes a aguardar a vez.
E nos supermercados? Outro dia fui até ao de esquina comprar chá de erva-doce. Adoro chá – coisa de velho? Que seja! – Quando fui pagar no caixa exclusivo, que dizia com letras bem grandes “CAIXA PREFERENCIAL PARA IDOSOS E GESTANTES”, um sujeito moço de uns vinte e tantos estava despejando todo o seu carrinho cheio no balcão do caixa. Iria demorar alguns e lentos minutos. Fiquei na fila para provocar alguma reação de alguém, e nada. A caixa, mulher gorda e bigoduda, olhava somente as compras com olhos de peixe-morto – digitava os preços e pensava na novela das oito –. Quanto a mim, parecia invisível; eu e as minhas caixinhas de chá. Cena lamentável. Mas para o meu consolo, o caixa ao lado, caixa de dez volumes, recebia de uma mulher um carrinho lotado de tranqueiras de perfumaria. Fiquei um pouco mais satisfeito, pois percebi que o supermercado era indiferente não somente com os idosos, mas a tudo. Com custo chegou a minha vez de pagar; perna já inchada e cansada. A caixa com olhos de peixe-morto continuava de cabeça baixa, uma vez ou outra perguntava à outra caixa sobre alguma fofoca esquecida. E eu ali com minhas caixinhas de chá...
Depois dos cinqüenta, muita coisa de ruim acontece com você. Muita gente pensa que você tá morto, não serve mais pra nada. É aí que você surpreende a todos eles!...
Esses rápidos pensamentos se esgotaram antes mesmo que seu Claudecir conseguisse chegar à boca do caixa para receber o dinheiro de sua aposentadoria. Foi aí que se sentiu mais vivo e mais jovem do que nunca; passou uma morena de saia justa e transparente, onde se via a minúscula calcinha perdida dentro de uma imensidão obscura. Seu Claudecir estufou o peito e gritou pros funcionários do banco: – “Vocês não tem respeito com os mais velhos! Nós não estamos mortos não!”.



Contos de Botequim.(Silfra Doval, Taubaté, 16 de julho de 2005).

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