Sejam Bem-Vindos!

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quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Espaço Conto: Nos Cantos do Rio


O menino não teria mais de oito anos, fumava, bebia, discutia como gente grande. Do seu universo, era um ser estranho, não era criança, não era adulto. Sabia já como era o sexo, mas não tinha, ainda, o porte físico necessário, nem a criatividade para suportá-lo. Os hábitos eram de gente acostumada ao sofrimento, a pele e o sorriso escondiam um enigma sombrio. Coisa diferente, triste, ameaçadora... Que coitado! Foi a minha observação que fiz a respeito de Boa-vida, criança de rua nascida na rua, cujo apelido refletia certo escárnio, um deboche de quem vivia de baixo de uma marquise na Central do Brasil.
Boa-vida vivia do dia, da ação, da esperteza, não era ladrão não! Vendia balas, doces, era flanelinha, conselheiro, proseador, engraxate, jornaleiro, office-boy, guia turístico e até se intitulava professor. Sim, professor dos menores, aqueles, que como ele, já estavam abandonados na rua, sem família, sem carinho, sem ninguém. Tudo fruto do descaso, do esquecimento.
Pensamentos distantes de Goro, outro menino de rua, com seus oito anos, amigo de Boa-vida:
– Estou sentindo tanto frio!... E tenho também fome!... Que coisa..., outro dia uma mulher de saia grande que se dizia ser testemunha de Jeová me disse que seremos salvos e que iremos pra outra vida, não teremos mais fome nem frio, seremos amados e confortados. E que eu estarei ao lado do rei. Não compreendi muito bem, e na verdade, ainda não entendi. Estou a sofrer já faz tempo e nada me acontece. Hoje tive que bater a carteira de um otário grande e gordo, de bolso cheio e ar arrogante. Dizem que não é justo, mas eu me pergunto, por que muita gente tem casa boa e família, enquanto eu sofro e me ferro? Isso é justo? O que foi que fiz pra merecer isso? Desde menor e com os meus sete, já perdi a noção de grande e pequeno, e dizem por aí que sou ainda de menor, mas e o meu cigarro? Minha puta que me ama não fala nada disso. Diz que sou é homem e dos mais machos que existem!
No trânsito infernal do fim de expediente, pelas redondezas da Central, lá estavam Boa-vida e Goro sentados num banco imundo de praça, fumando um pito de cigarro. O olhar vago dos dois e a falta de perspectiva de futuro confluíam para uma imaginação perturbada, doentia e sofrida. Ambos observavam a multidão que iam e vinham de todos os lados e pra todas as direções. O pensamento de Boa-vida fluía por nuvens dispersas a enormes alturas. Imaginava como seria uma vida longe das ruas. Via-se imerso num mundo de conforto e segurança. Via-se, ao acordar, num quarto limpo e só seu, receber o sorriso e o afago de uma mãe; uma mãe sem rosto, presente apenas pelo vulto e pelos carinhos recebidos, pois desde muito cedo, tinha sido deixado na rua com a negra Zélia que o criou com a educação dada pela rua e o preparou para os desafios dos menos afortunados. Algo em Boa-vida, ainda, respirava..., era a alma carente de criança que reclamava seu contento, pois quando se é criança, mesmo já adulto precoce, sempre existirá algum indício que denuncie a fragilidade infantil.
Goro, pelo contrário, apesar de tanto sofrimento, não gostava muito de pensar em coisas boas, até porque nada era bom em sua vida - Faz ou não faz sentido?... Moleque realista, mais velho que Boa-vida, apenas dois anos. Aparentava ter lá seus dez anos bem vividos, e muito bem vividos, no sentido mais desafiador e mais indigno da condição humana. Aos cinco anos fugira de casa. Seu pai, um homem bruto e alcoólatra, espancava-o constantemente. Sua mãe, mulher ignorante e parideira, também não lhe dava a atenção necessária e sempre concordava com as decisões do marido. Resolvera, então, fugir. Pra bem longe!
Goro, de iniciou, instalou-se na Praça da Bandeira, mas logo foi tocado de lá por excesso de moradores. Seguiu então pra Central do Brasil, a velha estação de trens da cidade maravilhosa. Foi pelas adjacências da central, em alguma marquise de loja, que conheceu o Boa-vida e se tornaram grandes amigos.
Naquele momento, enquanto fumavam o já quase extinto pito de cigarro, foram interrompidos de seus transes e enxotados por um velho mendigo que reclamava seu direito naquela área. Não criaram caso, até porque Goro e Boa-vida compreendiam muito bem aquilo. O velho estava no seu direito. A lei das ruas protegia-o de qualquer invasão; um código de ética que por sinal muito bem respeitado.
O crepúsculo anunciava noite quente e movimentada, bem típica dos verões cariocas. Os dois seguiram gingando pelas estreitas ruas do centro do Rio em direção à Lapa...

– O quê vamo fazer na Lapa, Boa-vida?

– Lá tenho um irmão que quer te conhecer..., o Ceroula. – respondeu o Boa-vida.

O Ceroula era um moleque já grande e conhecido como o terror da Lapa. Negro, alto e magricelo. Aparência medonha. O apelido deu-se por usar uma ceroula na cabeça como boné, adorno que o deixava ainda mais sinistro.
Também era na Lapa onde Boa-vida se afogava no sexo prematuro, movido à caninha e cola. Conheceu noutro dia uma prostituta chamada Dalva, muito forte e sarará, cara de muitos homens, e cínica feito o diabo. Era com ela que o Boa-vida se acabava em prazer e era com ela que o menino buscava orientação. Apesar da Central ser sua jurisdição, quase todos os dias deixava o Goro por lá pra se encontrar já tarde, depois dos mais esfomeados, com a suarenta e pegajosa Dalva.
A apresentação de Goro ao Ceroula deu-se. Logo os dois se entenderam e caíram dentro da caninha barata oferecida pelo cortesão. O motivo da apresentação de Goro ia muito mais que uma simples bebedeira. Sabedor das histórias de Goro por Boa-vida, Ceroula encontrara seu par perfeito para aterrorizar as redondezas da Lapa. Então, durante a pândega, o Ceroula propôs o seu primeiro convite de união com Goro. O plano seria um assalto à mercearia do Joaquim Pinto, português avaro, odiado por muitos naquela região. Boa-vida, no entanto, desconhecia as verdadeiras intenções do Ceroula, e mesmo se soubesse não meteria o bedelho naquilo que não lhe dizia respeito.
À noite sem fim cedeu lugar ao raiar de um sol feliz e empolgante. O calor, desde cedo, já fazia transpirar os corpos inquietos e sem água há semanas. Boa-vida acabara de chegar da cama de Dalva; cigarro na boca, andar gingado, olhar feliz. Foi procurar Goro para o retorno à Central. Encontrou-o deitado enrolado com uns trapos próximo à marquise de uma loja de tecidos. Cutucou-o diversas vezes e percebeu que ainda estava bêbado em demasia. Resolveu sair gingando à procura de um cigarro e uma boa prosa.
Enfim, Goro despertou. Foi procurar o Ceroula pra confirmar o plano. Boa-vida ao avistá-lo assoviou de longe e fez sinal que esperasse. Goro parou, tirou um cigarro amassado da orelha e acendeu-o.

– Até que fim! Tava durmindo que nem um porco! Tá ainda bêbado? Vamo voltar pra lá pra Central?
– Irmão, temos um serviço, hoje, com o compadi Cerôla. É sopa na crista. Depois agente vamos – Respondeu Goro.

Boa-vida não gostou muito da idéia e resolveu ficar de fora. Não era o seu feitio. Não gostava de roubar ninguém. Caso fosse necessário, talvez, o necessário pro almoço, mas não gostava dessas coisas. Aconselhou Goro a cair fora, várias vezes já tinha dito que eles não precisavam disso. Disse também que já imaginava isso por parte do Ceroula.
Boa-vida procurou fazer algo durante todo o dia. Procurou almoço na casa de Dalva e se surpreendeu pela quantidade de homens que encontrou na sórdida cama. Voltou pensativo, não decepcionado. Já conhecia tudo na vida. Não amava Dalva..., claro que não. Mas, às vezes, parava pra pensar na sua vida...
O assalto haveria de ocorrer às 22:00 horas, horário de fechamento da mercearia. Goro e Ceroula sumiram a tarde toda. Boa-vida ficou por ali mesmo, resolveu, então, procurar o que fazer; ganhar uns trocados pras refeições futuras. Foi parar num sujo e lotado supermercado popular. Apresentava-se aos consumidores como ajudante. Apesar da ação trabalhista e educada de abordar os clientes, Boa-vida recebeu muitos olhares desconfiados e preconceituosos, mesmo assim, já estava acostumado. Não delegou muita importância e acabou conseguindo umas patacas pra janta do dia.
Satisfeito com os cobres recebidos, resolveu procurar Goro. Próximos aos arcos da Lapa, Goro e Ceroula proseavam divertidamente. Boa-vida se aproximou:

– Pra que horas vai o serviço?
– Mano Boa-vida não quer ajudar? – indagou o Ceroula.
– Não, tô fora, não quero barulho.
– Cualé Boa-vida, vai deixar teu mano na onça? – agora era a vez de Goro.

Goro e Ceroula insistiram tanto que Boa-vida, mesmo sem querer, consentiu participar da ofensiva. Faria o papel de último cliente da noite. Apesar da roupa suja, que denunciava seu domicílio, Boa-vida sabia ser educado nas horas de necessidade. Era a pessoa certa pra desencadear o assalto ao português.
Já próximo das dez, Boa-vida pensou melhor e quase deu pra trás no plano. Pensou que se negasse a participar, talvez, caísse no descrédito do Ceroula. Coisa que era inadmissível nos regulamentos da rua.
Assim foi o Boa-vida entrar lá pelas dez horas na mercearia de Joaquim Pinto. O português sobressaltou-se de imediato. Conhecia de longe a presença de gente da rua.

– O que você quer aqui? – perguntou rispidamente o lusitano.
– Boa noite senhor? Estou procurando umas conservas pra sopa da minha tia. Ela prefere a marca cica, o senhor tem dessa marca aqui?

O português ainda ficou fitando Boa-vida desconfiado, na verdade, surpreendeu-se com a educação e com a pergunta de sentido do moleque.

– Acho que tenho ali no alto. Espere onde está que vou procurar – disse com sotaque inconfundível.

No momento que Joaquim Pinto deu as costas, Goro e Ceroula entraram violentamente na mercearia anunciado o assalto. Fecharam num piscar de olhos as portas e lá dentro ficaram, a sós, com o português. Assustado, Joaquim Pinto não falava nada. Estava, na verdade, já calculando o prejuízo que teria. Olhava profundamente pra cara do Goro e do Ceroula; não reconhecia o primeiro, mas o segundo já sabia que conhecia de outros carnavais.
Não houve nenhum tipo de agressão física ao português. Os três recolheram, num saco de estopa, a féria do dia, maços de cigarros, enlatados, bebidas e tudo que agradasse aos olhos. O saldo com certeza, uma boa soma. Só que na saída, motivados pelo sucesso do serviço, não perceberam a aproximação de dois seguranças de comércio, fortemente armados. Os três foram crivados de balas pelas costas. Não tiveram tempo nem de correr. Acho que nem perceberam o fracasso imediato dos seus planos.
Morreram três meninos de rua, com histórias diferentes, mas com os mesmos destinos.
Ao caso não foi dado tanta importância na cidade maravilhosa, pois a prova do crime estava com eles. Pra sociedade eram apenas ladrões sem futuro, não eram crianças. Eram monstros, assassinos, surgidos e criados na sarjeta, algo fora da realidade. Pras pessoas, são coisas que foram criadas sabe lá onde, mas que residem a cada dia e em maior número nos cantos do Rio.

(Contos de Botequim – Silfra Doval – 8 de maio de 2006).

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