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terça-feira, 10 de agosto de 2010

Espaço Momentos Antológicos: Jorge Amado, 'Dona Flor e Seus Dois Maridos'


Os Momentos antológicos da literatura brasileira significam todas aquelas passagens que marcaram uma obra literária. Para inaugurar esse novo espaço em “O Botequim”, separei dois trechos memoráveis da obra ‘Dona Flor e seus Dois Maridos, de Jorge Amado; e se trata logo dos capítulos 1 e 2, a morte do malandro Vadinho em pleno carnaval baiano, vestido de baiana e com uma imensa mandioca por debaixo das pernas! Vale a pena conferir é maravilhoso!

Capítulo 1

Vadinho, o primeiro marido de dona Flor, morreu num domingo de carnaval, pela manhã, quando, fantasiado de baiana, sambava num bloco,
na maior animação, no largo dois de julho, não longe de sua casa. Não
pertencia ao bloco, acabara de nele misturar-se, em companhia de mais
quatro amigos, todos com traje de baiana, e vinham de um bar no cabeça onde o uísque correra farto à custa de um certo Moysés Alves, fazendeiro de cacau, rico e perdulário.
O bloco conduzia uma pequena e afinada orquestra de violões e
flautas; ao cavaquinho, Carlinhos Mascarenhas, magricela celebrado nos
castelos, ah! um cavaquinho divino. Vestiam-se os rapazes de ciganos e
as moças de camponesas húngaras ou romenas; jamais, porém, húngara ou
romena ou mesmo búlgara ou eslovaca rebolou como rebolavam elas,
cabrochas na flor da idade e da faceirice.
Vadinho, o mais animado de todos, ao ver o bloco despontar na
esquina e ao ouvir o ponteado do esquelético Mascarenhas no cavaquinho
sublime, adiantou-se rápido, postou-se ante a romena carregada na cor,
uma grandona, monumental como uma igreja - e era a igreja de São
Francisco, pois se cobria com um desparrame de lantejoula doirada -,
anunciou:
- Lá vou eu, minha russa do tororó...
O cigano Mascarenhas, também ele gastando vidrilhos e miçangas,
festivas argolas penduradas nas orelhas, apurou no cavaquinho, as
flautas e os violões gemeram, Vadinho caiu no samba com aquele exemplar
entusiasmo, característico de tudo quanto fazia, exceto trabalhar.
rodopiava em meio ao bloco, sapateava em frente à mulata, avançava para
ela em floreios e umbigadas, quando, de súbito, soltou uma espécie de
ronco surdo, vacilou nas pernas, adernou de um lado, rolou no chão,
botando uma baba amarela pela boca onde o esgar da morte não conseguia
apagar de todo o satisfeito sorriso do folião definitivo que ele fora.
Os amigos ainda pensaram tratar-se de cachaça, não os uísques do
fazendeiro: não seriam aquelas quatro ou cinco doses capazes de possuir
bebedor da classe de Vadinho; porém toda a cachaça acumulada desde a
véspera ao meio-dia quando oficialmente inauguraram o carnaval no bar
triunfo, na praça municipal, subindo toda ela de uma vez e derrubando-o
adormecido. Mas a mulata grandona não se deixou enganar: enfermeira de
profissão estava acostumada com a morte, freqüentava-a diariamente no
hospital. Não, porém, tão íntima a ponto de dar-lhe umbigadas, de
pinicar-lhe o olho, de sambar com ela. Curvou-se sobre Vadinho,
colocou-lhe a mão no pescoço, estremeceu, sentindo um frio no ventre e
na espinha:
- Tá morto, meu deus!
Outros tocaram também o corpo do moço, tomaram-lhe do pulso,
suspenderam-lhe a cabeça de melenas loiras, buscaram-lhe o palpitar do
coração. Nada obtiveram, era sem jeito. Vadinho desertara para sempre do
carnaval da Bahia.


Capítulo 2

Foi um rebuliço no bloco e na rua, um corre-corre pelas redondezas, um deus- nos-acuda a sacudir os carnavalescos - e ainda por cima a escandalosa Anete, professorinha romântica e histérica, aproveitou a boa oportunidade para um chilique, com pequenos gritos agudos e ameaças de desmaio. Tôda aquela representação em honra do dengoso Carlinhos Mascarenhas, por quem suspirava a melindrosa de faniquito fácil - dizendo-se ela própria ultra-sensível, arrepiando-se como uma gata quando êle dedilhava o cavaquinho. Cavaquinho agora silencioso, pendendo inútil das mãos do artista, como se Vadinho houvesse levado consigo para o outro mundo seus derradeiros acordes. Veio gente correndo de todos os lados, logo a notícia circulou pelas imediações, chegou a São Pedro, à Avenida Sete, ao Campo Grande, arrebanhando curiosos. Em tôrno ao cadáver reunia-se uma pequena multidão a acotovelar- se em comentários. Um médico residente em Sodré foi requisitado e um guarda-de-trânsito sacou de um apito e nele soprava sem parar como a advertir a cidade inteira, a todo o Carnaval, do fim de Vadinho. Pois se é Vadinho, coitadinho dêle !", constatou um careta, com sua mascara de meia, perdida a animação. Todos reconheciam o morto, era largamente popular, com sua alegria esfuziante, seu bigodinho recortado, sua altivez de malandro, benquisto sobretudo nos lugares onde se bebia, jogava, e farreava; e ali, tão perto de sua residência, não havia quem não o identificasse. Outro mascarado, êste vestido de aniagem e coberto com uma cabeçorra de urso, varou o cerrado grupo, conseguiu aproximar-se e ver. Arrancou a máscara deixando exposta uma cara aflita, de bigodes caídos e crânio careca e murmurou:
- Vadinho, meu irmãozinho, que foi que te fizeram?
"Que foi que deu nêle, de que morreu?" perguntavam-se uns aos outros, e havia quem respondesse: "foi cachaça", numa explicação por demais fácil para tão inesperada morte. Uma velha curvada parou também, deu sua olhadela, constatou:
- Tão moderno ainda, por que morrer tão môço?
Perguntas e respostas cruzavam-se, enquanto o médico colocava o ouvido sôbre o peito de Vadinho, numa constatação final e inútil. "Estava sambando, numa animação retada, e sem avisar nada a ninguém, caiu de lado já todo cheio da morte" - explicou um dos quatro amigos, curado por completo da cachaça, de súbito sóbrio e comovido, meio sem jeito nas roupas femininas de baiana, as faces vermelhas de carmim, fundas olheiras negras, traçadas com cortiça queimada, sob os olhos. O fato de estarem fantasiados de baiana não deve levar a maliciar-se sôbre os cinco rapazes, todos eles de macheza comprovada. Vestiam-se de baianas para melhor brincar, por farsa e molecagem, e não por tendência ao efeminado, a suspeitas esquisitices. Não havia chibungo entre eles, benza Deus. Vadinho, inclusive, amarrara sob a anágua branca e engomada, enorme raiz de mandioca e, a cada passo, suspendia as saias e exibia o troféu descomunal e pornográfico fazendo as mulheres esconderem nas mãos o rosto e o riso, com maliciosa vergonha. Agora a raiz pendia abandonada sôbre a coxa descoberta e não fazia ninguém rir. Um dos amigos veio e a desatou da cintura de Vadinho. Mas nem assim o defunto ficou decente e recatado, era um morto de Carnaval e não exibia sequer sangue de bala ou de facada a escorrer-lhe do peito, capaz de resgatar seu ar de mascarado. Dona Flor, precedida, é claro, por dona Norma a dar ordens e a abrir caminho, chegou quase ao mesmo tempo que a polícia. Quando despontou na esquina, apoiada nos braços solidários das comadres, todos adivinharam a viúva, pois vinha suspirando e gemendo, sem tentar controlar os soluços, num pranto desfeito. Ao demais, trajava o robe caseiro e bastante usado com que cuidava do asseio do lar, calçava chinelas cara-de- gato e ainda estava despenteada. Mesmo assim era bonita, agradável de ver- se: pequena e rechonchuda, de uma gordura sem banhas, a côr bronzeada de cabo-verde, os lisos cabelos tão negros a ponto de parecerem azulados, olhos de requebro e os lábios grossos um tanto abertos sôbre os dentes alvos. Apetitosa, como costumava classificá-la o próprio Vadinho em seus dias de ternura, raros talvez, porém inesquecíveis. Quem sabe, devido às atividades culinárias da espôsa, nesses idílios Vadinho dizia-lhe "meu manue de milho verde, meu acarajé cheiroso, minha franguinha gorda", e tais comparações gastronômicas davam justa idéia de certo encanto sensual e caseiro de dona Flor a esconder-se sob uma natureza tranqüila e dócil. Vadinho conhecia-lhe as fraquezas e as expunha ao sol, aquela ânsia controlada de tímida, aquêle recatado desejo fazendo-se violência e mesmo incontinência ao libertar-se na cama. Quando Vadinho estava de veia, não existia ninguém mais encantador e nenhuma mulher sabia resistir-lhe. Dona Flor jamais conseguira recusar-se a seu fascínio nem mesmo se a tanto se dispunha cheia de indignação e de raiva recentes. Pois, em repetidas ocasiões, chegara a odiá-lo e a arrenegar o dia em que unira sua sorte à do boêmio. Mas andando agoniada, ao encontro da intempestiva morte de Vadinho, dona Flor ia zonza, vazia de pensamentos, de nada se recordava, nem dos momentos de densa ternura, menos ainda dos dias cruéis, de angústia e solidão, como se ao expirar ficasse o marido despojado de todos os defeitos ou como se não os houvesse possuído em "sua breve passagem por este vale de lágrimas". Foi breve sua passagem por êsse vale de lágrimas", pronunciou o respeitável professor Epaminondas Souza Pinto afetado e afobado, tentando cumprimentar a viúva, dar-lhe os pêsames, antes mesmo dela chegar junto ao corpo do marido. Dona Gisa, também professôra e até certo ponto também respeitável, conteve o açodamento do colega e conteve o riso. Se em verdade fôra breve a passagem de Vadinho pela vida – vinha de completar trinta e um anos -, para ele, dona Gisa bem o sabia, não fôra o mundo vale de lágrimas e, sim, palco de frases, engodos, embustes e pecados. Alguns dêles aflitos e confusos, sem dúvida, submetendo seu coração a árduas provas, a agonias e sobressaltos: dívidas a pagar, promissórias a descontar, avalistas a convencer, compromissos assumidos, prazos improrrogáveis, protestos e cartórios, bancos e agiotas, caras amarradas, amigos esquivando-se, sem falar nos sofrimentos físicos e morais de dona Flor. Porque, considerava dona Gisa em seu português arrevesado - era vagamente norte-americana naturalizara-se e se sentia brasileira mas o diabo da língua ah! não conseguia dominá-la -, se houvera lágrimas na breve passagem de Vadinho pela vida, elas tinham sido choradas por dona Flor e foram muitas, davam de sobra para o casal. Diante de tão súbita morte, dona Gisa não pensava em Vadinho senão com saudade: era-lhe simpático, apesar de tudo; possuía um lado gentil e cativante. Nem por isso, no entanto, nem por ele encontrar-se ali, no Largo Dois de Julho, morto, estendido na rua, vestido de baiana, iria ela de repente santificá-lo, torcer a realidade, inventar outro Vadinho feito de um só pedaço. Assim explicou a dona Norma, sua vizinha e íntima, mas não obteve da parceira o esperado apoio. Dona Norma muitas vêzes dissera as últimas a Vadinho, brigava com ele, pregava-lhe sermões monumentais, chegara um dia a ameaçá-lo com a polícia. Naquela hora derradeira e aflita, porém, não desejava comentar as predominantes e desagradáveis facêtas do finado, queria apenas gabar seus lados bons, sua gentileza natural, sua solidariedade sempre pronta a manifestar-se, sua lealdade para com os amigos, sua indiscutivel generosidade (sobretudo se a praticava com o dinheiro alheio), sua irresponsável e infinita alegria de viver. Aliás, tão ocupada em acompanhar e socorrer dona Flor, nem tinha ouvidos para Dona Gisa com sua dura verdade. Dona Gisa era assim: a verdade acima de tudo, por vêzes a ponto de fazê-la parecer áspera e inflexível; talvez numa atitude de defesa contra sua boa fé, pois era crédula ao absurdo e confiava em todo mundo. Não, não relembrava os malfeitos de Vadinho para criticá-lo ou condená-lo, gostava dêle e com freqüencia perdiam-se os dois em longas prosas, dona Gisa interessada em apreender a psicologia do submundo onde Vadinho se movimentava, ele a contar-lhe casos e a espiar-lhe no decote do vestido o nascer dos seios pujantes e sardentos. Talvez dona Gisa o entendesse melhor que dona Norma, mas, ao contrário da outra, não lhe descontava sequer um defeito, não ia mentir só por que ele morrera. Nem a si própria dona Gisa mentia, a não ser quando isso se fazia indispensável. E não era o caso, evidentemente. Dona Flor atravessava o povo no rastro de dona Norma a abrir caminho com os cotovelos e com sua extensa popularidade:
- Vai, arreda minha gente, deixa a pobre passar . . .
Lá estava Vadinho no chão de paralelepípedos, a bôca sorrindo, todo branco e loiro, todo cheio de paz e de inocência. Dona Flor ficou um instante parada, a contemplá-lo como se demorasse a reconhecer o marido ou talvez, mais provàvelmente, a aceitar o fato, agora indiscutível, de sua morte. Mas foi só um instante. Com um berro arrancado do fundo das entranhas, atirou-se sôbre Vadinho, agarrou-se ao corpo imóvel, a beijar-lhe os cabelos, o rosto pintado de carmim, os olhos abertos, o atrevido bigode, a bôca morta, para sempre morta.

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