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terça-feira, 2 de novembro de 2010

Espaço Conto: Ponte de Safena

Quem disse que pobre não tem problema de rico? – Intrometeu-se Cabelo-Frito na conversa de dois contínuos, ao mesmo tempo abrindo o enorme guarda-chuva preto em um ponto de ônibus em Campo Grande. O Mulato, já de muita idade, viajava no 368 fazia anos. Cabelo-Frito ostentava uma larga experiência em histórias folclóricas de passageiros descontentes com a vida.
No Rio de Janeiro, quando se mora pelas bandas da Baixada ou da Zona Oeste, significa dor de cabeça diária na ida pro trabalho. Para o pobre – dizia Cabelo-Frito já dono da verdade – sofrer é coisa natural. Vejam esse ponto de ônibus como está cheio. Quando o lotação chegar, já virá transbordando. A vida é assim mesmo. Nós temos pouquíssimas opções legais de transporte, e além do mais, são velhas carroças a preços exorbitantes, mas para aqueles sem frescura, que se contentam com quebra-galho, temos o socorro do ônibus marinete do seu Valdemar, a vã apertadinha do Marcão do Cezarão, sem mencionar a Kombi galinheiro do Klinger de Cosmos. Isso são problemas comuns a todo pobre, sem falar nos engarrafamentos da Brasil! Fenômeno que provoca a demissão de muito trabalhador honesto. Tem a hora de chegar, o cartão, a cara do chefe, o desconto no final do mês. Isso se der sorte, se convencer a desconfiança do chefe.
E os ricos? – continuou o mulato, sob os olhares silenciosos dos dois contínuos – Esses que gostam de aspirar o ar campestre do subúrbio, de sentir o cheiro de bosta de boi ao passar da boiada, de passear de charrete pelas ruas do bairro, o problema já é mais sério. Não é pela condução não, o rico suburbano tem carro do ano como rico da Zona Sul. Nem tão pouco pela distância que requer reserva de horário. O rico do interior não tem hora de chegar à sua empresa; não tem cartão pra bater, nem tão pouco chefe pra dar explicação. Se funcionário público de alto cargo, aí que o negócio fica verde-amarelo mesmo. E quando chega à repartição, só aparece pra tomar cafezinho pelos corredores. Mas o que aborrece os dias de árduo trabalho do rico suburbano são os buracos das avenidas esquecidas e os famigerados engarrafamentos. Era aí que eu queria chegar, os engarrafamentos... Os mesmos problemas dos pobres suburbanos – alertou Cabelo Frito.
Posso afirmar de pé junto que num engarrafamento em Parada de Lucas, qualquer bem-de-vida pagaria boa soma para se ver livre. As horas e horas de dinheiro perdido, preso em algum ponto da Avenida Brasil deixaria qualquer empresário em desespero... Pobres burgueses! Mas qual?! – respondeu indignado o próprio mulato – Estando ou não estando no trabalho, para esses ricos suburbanos, sempre existirá alguém pra tocar seus negócios; o sócio menor dono, a secretária boa de olho no futuro ou então um funcionário bajulador qualquer. Estereótipos que resguardam o atraso e ausência do tão angustiado chefe.
Mas a verdade seja dita. O medo do rico suburbano não é com seus negócios. São com os moleques de pistolas na cintura que estão lá do outro lado do vidro, prontos pra assaltá-lo no primeiro vacilo. Os engarrafamentos são assim mesmo. Só acontecem em regiões de risco. Áreas cercadas por favelas: Guadalupe, Parada de Lucas, Bonsucesso, Parque União. Lugares que antes foram bairros de maior respeito... Hoje, conhece-se outro respeito, a bala. É por isso que o rico fica em desespero dentro do carro.
Engarrafamento, congestionamento, entupimento, seja lá a denominação. O trânsito parado lembra uma artéria ou veia precisando ser desobstruída para dar passagem ao sangue. É o Ponto em comum das dores de cabeça do pobre e do rico, ambos unidos pelo mesmo problema, com conseqüências bem diferentes – Continuou Cabelo-Frito já reclamando do atraso do ônibus.
Ah sim! E os dias de chuva como o de hoje? Para ambos o problema duplica. Para o pobre é pior! Duplicam-se as horas de atraso ao trabalho, duplicam-se as broncas do chefe, os descontos em folha, o trabalho, duplica-se tudo. A saída pra casa não é diferente. Duplica-se o tempo de chegar ao lar, pra menos o tempo do sono, o cansaço, sem falar o mau-humor, e duplicam-se também as broncas na dona Maria que em casa espera sem saber de nada. Maldita imagem da Presidente Vargas, da Francisco Bicalho, da Brasil..., e novamente repete-se a cena, mais e mais engarrafamentos. Quando está tudo bem, o pobre diz que foi coisa do santo querido, e lá vai reza... Quando sobra algum... Uma vela.
Antes mesmo que Cabelo-Frito pudesse continuar sua tese do dia-a-dia, conhecimento de mais de vinte anos de passagem, surgia o 368 lotado a sua frente.
Os contínuos que antes escutavam com respeito as lições do velho mestre, agora já se preparavam para empurrá-lo na primeira oportunidade em busca de um lugar dentro do veículo. O mulato fechou seu enorme guarda-chuva preto e, embarcando por último no ônibus, rumou direto para a Praça Tiradentes.

(Silfra Doval, Taubaté, 14 de julho de 2005).

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