Sejam Bem-Vindos!

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domingo, 7 de agosto de 2011

CONTO: A Luta Política num Canto Qualquer do Pará

Tonico de Castro procurou um quarto de pensão para se hospedar, depois voltou para o bar de Zé cabeludo para se encontrar com Pedro. Já se passavam das oito da noite. Tonico tomava uma pinga com Pontegi. O caboclo dizia que já-já o doutor Pedro chegaria. Pontegi se tornara o braço direito de copo e de reflexões de Pedro. Durante as horas de bebedeira, Pedro recitava-lhe suas novas composições poéticas, seus novos pontos de vista, conversavam sobre filosofia, política e principalmente sobre o destino de Jardinópolis. Eram assuntos que, apesar de complexos para a sua mente, interessavam a Pontegi. O caboclo ficava maravilhado. Às vezes concordava, sem saber por que. Quando o assunto era política, Pontegi arriscava seus limitados pontos de vista. Pedro escutava-o como se estivesse falando com outro político. Respeitava o seu modo de ser e de ver o mundo. Aquela mudança de vida, vindo parar no bar de Zé cabeludo, tinha algo de benéfico para Pedro. Ele passou a conhecer mais de perto os costumes do povo de sua cidade, passou a conhecer melhor os seus hábitos, seu folclore, seus sofrimentos. Conheceu um mundo que só conhecia através de depoimentos, dos livros, das ideologias socialistas. Passou a sentir o calor da gente simples. Conheceu as malandragens da vida do bar, os contos e as conversas fiadas dos cachaceiros, das putas, do peão, do explorado, de Zé cabeludo. Conheceu as histórias populares sobre a conquista da terra, as histórias do pai do coronel Jacinto, o tão temido coronel Constâncio. Eram conhecimentos que Pedro não negava a ninguém. Estava feliz por ter conhecido aquela vida. Se sentia feliz por estar vivendo naquele ambiente. Pedro se sentia um homem realizado. Pedro agora podia começar a planejar sua trajetória política. Sonhava com uma profunda transformação social em Jardinópolis. Conhecia todo mundo, era bem visto por todos. Sua condição de filho do prefeito já não surtia efeito. Os forasteiros que chegavam à cidade e que logo se engajavam nas arruaças da birosca do Zé, eram tomados por simpatia pelo doutor poeta, mesmo sem o título de filho do prefeito. Pedro era tido como um mestre. Era requisitado a prestar conselhos a diferentes figuras marginalizadas de Jardinópolis. Todos gostavam dele. Pedro se tornava inconscientemente um líder...
Pontegi e Tonico já levantavam o quarto copo de caninha quando Pedro surgiu. Estava sóbrio e pensativo. Vestia uma camisa amarrotada de manga comprida branca. Uma calça de tergal surrada azul-marinho. Os cabelos despenteados. A barba por fazer, estado que logo impressionou Tonico. Pedro, assim que avistou Tonico, liberou um sorriso acolhedor e se dirigiu aos braços do amigo de longa data. Cumprimentaram-se e sentaram os três dando continuidade na bebedeira e na conversa.
A conversa de Tonico com Pedro varou boa parte da noite. Pontegi quase não participou da conversa, limitou-se apenas a escutar, mas foi o ralo que acabou esvaziando três garrafas de pinga da boa. Pedro lhe contou seus problemas em Jardinópolis, contou sobre sua nova vida. Dizia que havia renascido e que agora poderia atuar com os pés no chão. Contou os seus planos pro futuro. Estava radiante... Por outro lado, Tonico disse que estava em Jardinópolis também por planos nobres. Sabia da existência de um jornal de esquerda na cidade e sabia que Pedro era o seu fundador. Por isso veio para Jardinópolis como representante oficial do MST. Tonico e o Movimento dos Sem Terra tinham planos para a mobilização de trabalhadores explorados da região!...Era barulho à vista....
Pontegi já não se agüentava mais, nem sentado, capotou prum lado da birosca. Pedro e Tonico continuaram sua conversa. Tonico contou todos os seus planos e pediu ajuda a Pedro. Pedro disse que os dois deveriam se encontrar em outro lugar para resolverem melhor seus interesses. Tonico concordou, mas pediu pelo menos o ponto de vista de Pedro sobre aquilo que tinha dito. Pedro disse que estava direito, mas tinha que saber mais detalhes, não queria ver seu povo envolvido com barulhos de morte. Tonico concordou e marcaram para o outro dia, às dezoito horas na pensão onde estava, o novo encontro.


*****

É bem verdade que Tonico de Castro não concordava a fundo com as idéias políticas de Pedro. Tonico era mais radical. Gostava de organizar manifestações, reivindicações, greves, barulhos, e até, se fosse o caso, quebra-quebra. Não concordava com nenhuma forma de injustiça, com nenhum tipo de exploração. Logo que ingressou na universidade, arrumou uma confusão danada na biblioteca do curso de Filosofia. Um bate boca sobre questões filosóficas com um professor de Literatura, que segundo diziam, não regulava bem. De um lado Tonico, defendendo as idéias sobre o conceito de alma livre de Nietzsche. Do outro, o professor Carlos Conceição, exaltado, antipático às concepções do filósofo maldito. Só faltaram cair no tapa. Tiveram que ser separados pelos funcionários da biblioteca, pois os alunos que assistiam à discussão tomavam partido do barulho, apoiando uns ao Tonico e outros ao professor Conceição. Quase virou uma pancadaria só.
Ao contrário de Tonico, Pedro era mais calmo, aberto ao diálogo, seja lá qual fosse o problema. Achava que tudo tinha que ser resolvido com uma boa conversa. Tudo tinha que ser esclarecido, um legítimo político. Apoiava a participação popular nas decisões que envolvesse a coletividade. Durante sua vida acadêmica, participou de movimentos de protestos contra os desmandos do governo federal, mas de forma pacífica, negociando com as autoridades policiais, negociando com a ordem pública, negociando com a imprensa. Tinha um jornalzinho que circulava pelo Campus universitário chamado O Labirinto: Jornal de política e literatura, onde anunciava suas idéias de transformação social, sua poesia, seu protesto contra a exploração do trabalhador. Às vezes citava nomes de políticos de sua cidade natal, como o coronel Siqueira, o José Vitor, o doutor Pacheco, o coronel Jacinto... Mas tudo sem barulho, sem quebra-quebra.
A reunião marcada pras dezoito se estendeu até quase uma da manhã. Tonico de Castro expôs todos os seus planos. Disse que o sucesso do movimento só teria êxito se Pedro apoiasse. A população da cidade estava com ele. Nada faria o coronel Jacinto de ruim contra o povo, muito menos seu pai que como dizia era “pau-mandado”. Tonico argumentou, argumentou... Pedro ouvia, refletia, perguntava, tecia hipóteses. Não concordou em tudo com Tonico. Tonico era radical demais em todas as decisões. Propôs, de início, um trabalho de planfetagem nas fazendas, nos garimpos, na cidade, por um período suficiente para convencer o peão, o explorado, o trabalhador braçal das fazendas, dos garimpos, as putas e os mendigos da cidade a todos ingressarem no MST, a reivindicarem melhores condições de vida, de salários, de horas de trabalho, contra o fim da escravidão; a reivindicarem terras pra suas famílias, terra para poderem sobreviver como seres humanos. Tonico queria reunir os trabalhadores de Jardinópolis e convencê-los a cruzarem os braços, a fazerem uma greve geral por tempo indefinido. Queria reunir a população marginalizada pra invadir o mundaréu de terras do coronel Jacinto; aquelas terras que só serviam para amparar as bostas das vacas. Aquelas terras produtivas, paradas ao tempo. Milhares e milhares de hectares de terra parada que só servia para embustes do maldito coronel, para impressionar aos outros coronéis, para a contemplação de seus gananciosos olhos de vidro. Esses, de início, eram os planos de Tonico de Castro que desde cedo entrou para a política de esquerda. Durante seu tempo de estudante universitário fora filiado ao partido comunista, seu ídolo sempre foi Luís Carlos Prestes. Segundo ele, “o único herói e político que já existiu no Brasil”. Com esse sangue de esquerda, arrumava qualquer briga que favorecesse o povo. Já tinha sido preso várias vezes. Para alguns, era um marginal, para outros, um exemplo de militante. Abandonou o PCB logo que viu o partido se ruir. Andou sem coligações por um bom tempo, mas depois conheceu Antonio José Rainha Júnior, o fundador do MST. Para Tonico ele era o novo cavalheiro da esperança.
Pedro concordou com o trabalho de panfletagem, mas discordou de Tonico no sentido de uma organização coletiva. Achava que uma reunião desse tipo era um prato cheio para uma batalha sangrenta e covarde. Disse que Tonico não conhecia os jagunços, não conhecia os coronéis, muito menos não conhecia seu poder na região. Disse que tinha gente pobre que passava fome e que lhe era fiel, que morria de medo deles. Uma espécie de conformismo mental, temperado por idéias distorcidas, trabalho de fé popular e do poderio escravizador dos mandatários da região. Práticas que acabaram virando folclore.
Tonico insistiu, queria o apoio de Pedro a qualquer custo. Disse que mesmo o jornal estando fechado, eles poderiam utilizar a estrutura física para montarem a sede do partido, ou melhor, a sede do movimento. Pedro relutou e relutou, mas acabaram chegando num acordo. De início fariam um trabalho de panfletagem em toda a cidade. Inseririam idéias contra a exploração dos coronéis, contra aos maus tratos ao trabalhador, por melhores salários, por uma jornada de trabalho mais branda, pelos direitos trabalhistas. Começariam um trabalho de persuasão popular para que, futuramente, Pedro de Moraes pudesse concorrer – sem medo de vencer – as eleições em Jardinópolis, sem precisar de apoio de nenhum corrupto da cidade – os imortais “homens bons” –, apenas contaria com o apoio do povo. Caso não desse certo esse plano de Pedro, Tonico poderia por em prática o seu plano mais audaz. Convocar o povão a cruzar os braços, a passeatas, a invasões, a qualquer tipo de barulho. Tudo em nome da Liberdade, da Igualdade e da Terra!


*****

Passaram-se uns meses, Tonico e Pedro puderam por em prática seus planos. De início a relutância foi grande, a peãozada não compreendia de que se tratava aquele negócio de movimento, aquelas panfletagens desembestadas, que muita gente não compreendia o que estava escrito. Chico d’égua, preto sisudo, matador profissional, jagunção do coronel Zé Vítor, aderiu ao movimento. Sonhou com sua coragem de preto maldito e a possibilidade de crescer na vida...., ser um coroné, um mandatário, por que não? Chico d’égua era respeitado na fazenda da catinga, terra do coronel José Vitor. Homem brabo, sem meias palavras. Foi persuadido por Tonico de Castro; tarefa muito fácil, foi só explicar a possibilidade de angariar aquelas terronas todas que o capiau danado logo se interessou. Outro brabo persuadido por Tonico e seu povo foi o Dominguim das Ostras; bandidão procurado, vivia debaixo das asas do coronel Teixeirinha, dono das terras do baixo lago. Dominguim já havia aprontado nas cercanias de Aprocuaçu e Terra Nova, cidades próximas a Jardinópolis. Matou um muleiro, mascateiro, muito respeitado nas cercanias de lá, chamado Florindo. Esse tal de Dominguim era um covarde. Seu Tonico realmente não sabia com quem tava se metendo, Pedro de Moraes já tinha avisado, os coronéis não se resumiam apenas neles mesmos, tinham sua gente, seu povo, que por mais explorados que fossem, eram fiéis ao seu ditador. Mudar a idéia dessas pessoas? Tá louco! Isso era plano pra mai de anos. O povo de Jardinópolis não sabia o que era direto, muito menos revolução. Sabia que existia um danado que comandava seu rebanho, e que os mesmos deveriam obedecer. Era obra de Deus. Manda quem pode, obedece quem tem juízo.
Tonico de Castro conseguiu conquistar a confiança de muitos, mas também teve seus problemas. Seu Teodoro, jagunção do coronel Jacinto, não caiu naquela não. Não era trouxa nem nada, sabia que aquilo só acabaria em morte. Era um dos fiéis do mandantes. Teodoro da Fonseca Seixas, nome de gente importante, mas foi filho de um muleiro de Montes Claros, lá no nortão de Minas. Veio pro Pará com menos de cinco anos, e logo conheceu a família da dona Ermecilda e do coronel Constâncio, pai do coronel Jacinto. Se tornou um líder contra os revoltosos. Juntou gente braba também, Terezo José, Raimundo dedão, Militão, Manel navalhada, Anastácio, Sinhozinho... Era gente sinistra. Tudo matador, pior que animal. Gente que matava por um cruzeiro... O negócio era matar, pra botar na colheita, no currículo.
Os generais já estavam escalados só faltavam os soldados; os peões, os garimpeiros, os vagabundos, a gente maioria que iria compor a grande massa inconformada contra a exploração, contra o mal humano da escravização, a favor da terra.
Foi tarefa árdua de ano e meio. Com um povaréu estimado de mil e oitocentas pessoas. Gente já certa de participar do movimento armado, Tonico de Castro informou a Pedro, e este o alertou. Não tinha sido o combinado. As eleições em Jardinópolis seriam no próximo semestre. As propagandas eleitorais já estavam a todo o vapor. Pedro concorria pelo Partido da Frente Popular (PFP). A maioria dos boêmios da cidade iria votar nele. Os cachaceiros, as putas, os vagabundos, os peões, alguns jagunços mansos, eram os eleitores certos de Pedro. O outro candidato que fazia frente as suas pretensões era o próprio pai. O seu Justino de Moraes concorria, mais uma vez, a reeleição. Apoio total dos coronéis. A riqueza de sua campanha foi tremenda. Até alguns, já certo do apoio a Pedro, mudaram de opinião, verteram a casaca. Será pela facilidade da democracia? Será por opinião própria de pessoas preocupadas com política? Ou será por um prato de feijão? Ou com medo de sofrer represálias? Tratando-se do Pará tudo poderia acontecer. Muitos dizem que isso aqui é terra de ninguém. Eu sou contra essa afirmação, acredito ainda em milagres.
O trato de Pedro e Tonico, que antes foi muito bem elaborado, caiu por terra. Tonico quebrou a promessa, não se conteve. Organizou um movimento armado previsto para o dia 21 de abril, dia da inconfidência brasileira. Seu plano era de início foi tomar, simultaneamente, a prefeitura e as fazendas do coronel Jacinto, Zé Vitor, Maneca Dantas, Maciel Correa e outros. Um dia antes, todo o plano vazou. Os revoltosos, antes mesmo de iniciar a balburdia, foram contidos pelos seus coronéis, jurados de morte. Outros foram intimados pela polícia da cidade. O delegado, Pestana Silva, e o Cabo, Floriano Siqueira, tiveram trabalho árduo pra prender os suspeitos da revolta. O bar de Zé cabeludo foi invadido por policiais e jagunços. Zé foi preso por ser um dos suspeitos do movimento. Tonico de Castro foi caçado em toda a parte, mas não foi encontrado. Recebeu um aviso de um fiel partidário e vazou pra capital. Pedro de Moraes, também, foi caçado e preso pelo delegado Pestana Silva, mas horas depois já estava em liberdade por ordens de seu pai. O certo é que o movimento organizado por Tonico, trabalho de meses, foi por água a baixo. Como a inconfidência, tivemos aqui em Jardinópolis um Silvério dos Reis, um delator, um fofoqueiro, um x-9. Mas quem poderia ter feito uma coisa dessas? Foi um plano muito bem elaborado. Os mais temidos jagunços tinham o controle da situação. O povo humilde estava de acordo. Iriam participar do movimento contra a exploração, contra as mortes, contra o poderio dos coronéis. Mas quem poderia ter delatado o movimento?... Alguns dias depois, Pedro descobriu que tinha sido Pirangi, seu braço direito no bar do Zé cabeludo, é quem tinha denunciado todo o esquema dos planos de Tonico de Castro. Pirangi, agora, estava longe. Após a denúncia escafedeu-se da cidade. Alguns diziam que tinha ido pra Belém, outros pra João Pessoa, até pro Rio de Janeiro. Pedro de Moraes na cadeia refletia, refletia. Após sua soltura procurou saber de sua situação política. Em nada comprometeu, pois nada foi comprovado. Continuou sua campanha para as eleições que se aproximavam.
A traição foi planejada. Desde cedo, o bar de Zé cabeludo foi alvo de informantes dos coronéis. No bar do Zé, além das conversas fiadas de cachaceiros sem futuro, respirava-se política, poesia, literatura e até um pouco de filosofia. A influência de Pedro de Moraes contribuiu muito para esse ambiente boêmio, e por que não de intelectuais? Os filhos dos coronéis Maneca Dantas e José Vitor, também, participavam das grandes confraternizações. Pedro conhecia cada um deles. Era gente de mente aberta. Não era igual aos pais. Gente que acreditava não haver motivo para escravização na cidade. A riqueza é deles, dos coronéis. Por que não abdicar uns hectares pra essa gente tão sofrida? Um punhadinho de terra que fosse, qual seria o problema? Os filhos eram contra a exploração do peão, do garimpeiro, do vaqueiro e até do jagunço. Os filhos boêmios desses coronéis eram a favor da dignidade humana, dos direitos dos trabalhadores, apoiavam a candidatura de Pedro de Moraes pra prefeito da cidade. Eram diferentes de seus pais; Lucio Dantas, por exemplo, era biólogo, a contra gosto de seu pai, o coronel Maneca. Não se davam bem. Se não fosse a mãe, dona Dorinha Dantas, Lucio já tinha sido expulso de casa pelo pai.
Antônio Vitor era outro esquerdista de carteirinha. Tinha sido expulso duas vezes durante seu período na Universidade de Belém. Era formado em sociologia. Como Lucio, também, não tinha boas relações com seu pai. Vivia bêbado, enrabichado por uma tal de tininha, filha de feirante da cidade. Os dois filhos da nata Jardinense foram os primeiros suspeitos de terem dedurado os planos dos esquerdistas. Só muito tempo depois foi esclarecido, por Pedro, que o verdadeiro traidor tinha sido o maldito Pirangi, sumido desde o início do furdunço. O vara-pau tinha lhe contado tudo. Repetia dezenas de vezes aos curiosos revoltados, acompanhando um bom trago. Em suas explicações, buscava compreender o porquê da traição de Pirangi. A final, Pedro lhe pagava muito bem. Recebia muito mais do que muito peão que dava duro o dia todo no sol nas fazendas. Será que também Pirangi se sentia um explorado, como todos os outros nessa cidade? Será que estávamos agindo igual a eles? Sempre acompanhando uma boa dose, Pedro refletia, refletia. Já tinha acabado uma carteira de cigarro barato. Pediu outra ao Zé. Acendeu outro cigarro... Então, surgiram Lucio e Antônio Vitor que puxaram conversa com Pedro. Queriam saber detalhes da traição, tentariam se possível encontrar o traidor pelas cidades adjacentes. Pedro disse que não precisava. O que era dele estava guardado pra ele, era só dar tempo ao tempo. Em seguida, puxou uma mesinha enferrujada e molhada de copos de cerveja com três cadeiras, onde os três se sentaram, e Pedro começou a contar o que tinha ouvido do vara-pau.

*****

A verdade seja dita. Horas antes de estourar a grande revolta armada, Tonico de Castro estava trabalhando na sede do movimento, no antigo do jornal A Gazeta. Redigia textos revolucionários, incitando o povo a cruzar os braços e sair pelas ruas clamando seus direitos, em sua aparente paz de moço intelectual de esquerda. Já se passavam algumas horas depois das doze, a cidade saía daquele aspecto letárgico de fim de tarde. O sol ainda era de matar e o calor escaldante. Tonico suava, suava... Em sua cabeça fervilhante de idéias agressivas e revolucionárias pulsava todas as suas energias. A cada texto produzido sentia uma catarse de um gozo eterno, cheio de pensamentos de glória, de vitória... de conquista. Não sabia ele que enquanto estava se dedicando aos últimos preparativos para eclodir a revolta, Pirangi, seu secretário, estava na delegacia com o delegado Pestana Silva.
A sede do antigo jornal A Gazeta era uma casa de madeira de três cômodos e um banheiro. Apesar de ser de madeira, era uma casa muito grande. Em um dos cômodos funcionava o escritório do partido, antigo escritório do jornal. Em outro, antiga sala de tipografia, funcionava uma espécie de atelier, onde eram confeccionados os panfletos e os cartazes usados na divulgação do movimento. E o último cômodo era usado para as reuniões dos partidários. No atelier existia uma espécie de alçapão no piso de madeira. Esse alçapão iria dar nos fundos da casa, onde bem em frente havia um muro que separava o terreno da casa do igarapé cachorro-morto. Foi através desse alçapão que Tonico conseguiu fugir... Mergulhando no igarapé e desaparecendo por completo.
A missão de persuadir o povão a reivindicar os seus direitos afetou muitos trabalhadores de diversos setores da cidade. Trabalhadores rurais, peões, jagunços, garimpeiros, faxineiros, trabalhadores de escritório, gerentes sem futuros, recepcionistas, balconistas, vendeiros, camelôs, putas, vagabundos, cachaceiros, e por que também não policiais de baixa graduação?. A exploração em Jardinópolis também atingia os trabalhadores dos serviços públicos, como os policiais. As únicas autoridades de respeito na cidade eram o delegado Pestana Silva e o cabão, quase sargento, Floriano Siqueira. O resto eram soldados sem futuros, os meganhas. Mal vestidos, mal alimentados, mal treinados, mal armados, mal educados e mal pagos. Foi também este segmento que foi atingido pelas práticas políticas e revolucionárias de Tonico de Castro e Pedro de Moraes. A maior parte dos soldados foi convencida de que a sua contribuição para a polícia da cidade era muito importante. Tinham que ser valorizados. A polícia só existia por que existiam os soldados, eram os soldados que faziam tudo; faxina, guarda, ronda, ordem unida pra ficar bonito e uniforme, sem contar nas missões perigosas de pegar um jagunço matador aqui... de prender um ladrão degolador ali..., etc, etc. Muitos foram convencidos de sua importância na polícia. Deveriam receber um salário justo, não igual ao delegado Pestana Silva – uma exorbitância só –, mas um salário digno que desse o sustento a suas famílias. Aí, não foi difícil conseguir a simpatia do soldado Terezo Maia, nome esquisito, como era esquisito o próprio soldado. Magro feito uma vara, era chamado de vara-pau pelos amigos. Foi vara-pau quem avisou Tonico de Castro sobre a traição de Pirangi, avisou também da investida policial naquela noite. Tonico só teve tempo mesmo de juntar suas roupas e se escafeder da sede do movimento. Nem deu tempo de avisar a Pedro. Minutos depois alguns soldados comandados pelo cabo Floriano Siqueira, por ordens severas do coronel Jacinto, invadiam a sede do antigo jornal da cidade. Cena que se repetia pela segunda vez, arrombaram a porta principal e vasculharam tudo. Não encontrando o senhor Tonico, recolheram as provas existentes e tacaram fogo na casa de madeira. Minutos depois, Pedro era preso no bar de Zé cabeludo, junto com o dono do bar.
A noite já era bem escura, quando, num canto qualquer, e bem longe da cidade, Tonico observava um ponto luminoso onde se desprendia labaredas de fogo. Não imaginava que aquele sinal de fogo era a representação da fácil vitória dos coronéis.

*****

Enfim chegou o grande dia... As eleições municipais em Jardinópolis. Os candidatos se empenhavam, agora, em convencer aqueles eleitores ainda indecisos. O atual prefeito, Justino de Moraes, que defendia sua reeleição, estava confiante na vitória. Seu partido o PMDP (Partido da Mobilização Democrática Popular) era o mais rico e influente dos partidos políticos da cidade, contava com um número de vinte e três vereadores na Câmara Municipal, as treze vagas restantes eram divididas com o PFP, de Pedro, o PSPB de Marinho da Cruz e o PC (Partido Comunista) do Diogo da Silva. As pesquisas feitas por um órgão da prefeitura davam a vitória certa a Justino de Moraes, apontando como segundo lugar, o candidato do PSPB, Marinho da Cruz, candidato também apoiado pelos coronéis. Os únicos candidatos que não eram apoiados pela máfia de Jardinópolis eram o Pedro de Moraes, filho do prefeito Justino, e o Diogo da Silva, do PC, agricultor trabalhador que esteve ligado ao Partido Comunista da capital. Era também dia de grande expectativa, pela primeira vez na história da cidade, as eleições seriam realizadas numa máquina, numa urna eletrônica! Muita gente não concordava com isso. Pra muitos, o povo da cidade não estava acostumado com essas modernidades. E pra quê? A população da cidade não passava de três mil pessoas. Mesmo com o crescimento mensal de migrantes nordestinos e amazonenses, não chegava nem se quer a duzentos ao ano. Alguns diziam que essas máquinas eram pra acobertar os caxixes dos coronéis. Outros achavam que era a modernidade, o progresso.
Já para os candidatos, as opiniões se divergiam. Seu Justino era a favor, lógico. Pedro e Diogo eram contra. Marinho da Cruz, representando seu papel de coadjuvante e angariador de votos para um futuro apoio no segundo turno, dizia que se nos outros estados eram usadas as urnas, por que negar essa comodidade a Jardinópolis? A decisão de se por urnas nas eleições da cidade foi um acerto do presidente do Tribunal Regional Eleitoral de Jardinópolis com as forças políticas que governavam a cidade. Um acerto com a ala da direita, com os donos da cidade.
Dia de muito sol e calor. Dia de alegria. Dia de se decidir o destino da cidade. Nos bares o clima não era o mesmo. Dia de eleição era dia de lei seca. Não se podia beber antes do término das votações. O TRE de Jardinópolis, junto com a polícia do delegado Pestana Silva, fiscalizavam as biroscas da cidade. Algumas insistiram em vender cachaça, foram flagradas e multadas. Outras adotaram soluções inteligentes, vender de portas fechadas, mas a de Zé cabeludo foi demais. Depois de ter sido acusado de revolucionário e baderneiro, preso e espancado, Zé agora estava revoltado com o poder político da cidade. Apoiando Pedro em tudo que precisasse, decidiu que a sua birosca seria o local de concentração da vitória popular. Fechou o bar por fora, mas por dentro estava aberto para todos que quisessem comemorar a vitória de Pedro de Moraes à Prefeitura da cidade. Descaradamente, colocou um som nas máximas alturas e disponibilizou barris e barris de chopp para suprir a demanda do povão. Dentro do bar, uma multidão de cachaceiros, peões, putas, baixos funcionários... Estava o peão Batista já algum tempo sumido, o Lúcio Dantas e o Antônio Vitor, e também, o próprio candidato Pedro de Moraes. Todos estavam bebendo, discutindo política, futilidades, passando a mão nas coxas de alguém. Uns suavam, fumavam, fediam. Mas todos estavam à espera do veredicto final, a vitória do doutor Pedro; o fim da exploração na cidade.
Pedro perdeu a eleição e depois foi novamente preso. Acusado de ser comunista e de baderna, ficou um ano no xilindró.
Tonico de Castro tentou um levante armado com jagunços da região, mas foi morto após uma intensa troca de tiros.
A política de Jardinópolis continuou a mesma. Não mudou nada. As últimas resistências foram sepultadas com o glamour do esquerdismo que morria a cada ano, a cada derrota... Era a vitória do capitalismo, do dinheiro..., dos coronéis.

(Escrito por Franco Aldo em 2005)

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