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segunda-feira, 16 de maio de 2011

O Soldado no Quartel

Bem que afirmava aos mais novos, com seu rosto redondo e bem barbeado, o cabo Orlando:
– vida de quartel em tempo de paz não é pra qualquer um, tem que ter sangue de milico.
O cabo, com mais de quinze anos de prestativos serviços à nação, aguardava ansioso a promoção a Sargento, sonho desde a sua época de recruta novinho; bisonho na gíria militar. Possuía uma enorme barriga, talvez, fruto do desleixo e da despreocupação custeado pelos anos e anos de sacrificantes serviços de guarda ao quartel e outras missões desagradáveis. Mas mesmo assim, sua reputação na caserna estava em alta. Possuía muitos amigos, alguns de certa importância no aquartelamento, como o Major Golias; homenzinho baixo, fraco e chato, chefe de uma seção de desocupados e falastrões. O Sargento Bruno, outra personalidade pitoresca; gaúcho dos pampas, militar possuidor de toda uma seriedade estonteante e desanimadora, auxiliar da 2ª seção, como muitos diziam, um x-9, também era um de seus mais importantes amigos.
Conhecedor de toda malandragem nos serviços rotineiros do aquartelamento, Orlando tinha total convicção em dizer que muitas dessas amizades provinham de interesses dos mais variados, cuja importância, às vezes, fora condicionada pelos altos graus de intimidade forçada e subserviente; características comuns e marcantes de muitos militares com limitadas ambições na vida.
A malícia e o jogo-de-cintura faziam parte do cotidiano do cabo Orlando. Certo dia, fui surpreendido pelo senso de observação e astúcia do cabo. Estava esperando, sem nada fazer, dar o horário do almoço. Eu com meu copão e talher articulado na mão reclamava com o Jesus dos maus tratos nas horas das refeições:

– Não entendo porque soldado tem que levar talher e copo pro rancho. Será que ninguém percebe que nós também gostamos de ser bem tratados? E o cafezinho depois?

Jesus, assim como eu, era soldado raso. Era um negro muito forte, mas de limitada inteligência. Não conseguia dar uma resposta satisfatória às minhas reclamações, apenas praguejava um monte de palavrões para este e aquele oficial. Baixou a cabeça, enquanto arrastava o pé direito no chão para limpar uma ponta de barro que denunciava o coturno sujo, e depois mudou de assunto, como se eu não tivesse dito nada.
Era melhor falar do Corinthians, da Seleção Brasileira, do feriadão que se aproximava. Jesus com seu deficiente português achava que tudo um dia iria mudar, então não precisava perder tempo com essas coisas.
Ali bem pertinho, fingindo estar a conversar com o soldado Carlos, o cabo Orlando escutava atentamente as minhas reclamações.
Depois da saída de Jesus, chamado pelo sargento Vivaldo, aproximou-se de mim e puxou conversa sobre respeito e responsabilidade. Traçou perfis psicológicos da vida dos oficiais de carreira, trabalho de muitos anos de observação e astúcia que, segundo ele, é fruto de uma sensibilidade moldada a muitas decepções e rancores.
Das palavras de Orlando, consegui também me transformar em um observador da rotina viciada da caserna. E logo no início pude perceber que o mau humor dos superiores é muito comum dentro de um quartel, pois geralmente são causados por coisas fúteis que geralmente afetam os interesses pessoais de pessoas despreparadas e arrogantes. Concorre para a contaminação de todos aqueles que ainda sonham com feitos heróicos. Baixa a estima do soldadinho que consegue, a duras penas, uma divisa a mais. Solapa de descréditos os sargentos ainda novos e já velhos em pensamentos vagabundos. Sem contar os cabos velhos e suas enormes barrigas; alguns deles fingem doenças, arrumam desculpas, outros, porém, como meu amigo Orlando, são impassíveis perante a luta, a luta contra o enfado, contra o desmerecimento, contra as injustiças. Estóicos no bom linguajar poético.
Há muitos anos, quem possuía a patente de oficial fazia parte da elite nacional. Agora, talvez, encontre brilho apenas no passado, na história. Hoje, raros são os Oficiais de respeito dentro do exército; aqueles que honram as suas fardas em todas as situações, a quem o sargento, cabo e o soldado seguem cegos, no campo de batalha, até o fim de suas vidas, pois a confiança e o respeito mútuo ressoam a cada ordem dada, a cada gesto. Profissionais que vivem com vida o dia-a-dia da caserna, mas que questionam o baixo soldo, que brigam contra as injustiças, que respeitam seus subordinados.
Hoje, poucos se salvam e muitos estão descontentes com os baixos salários e com o baixo status na sociedade. Isso mesmo, pois hoje, o que impressiona é apenas o soar do posto: um Coronel, um Major, um Capitão, um Tenente. Quanto respeito se observa ao soar dessas palavras? Respeito que geralmente vem de gente humilde, ignorante, gente que desconhece o verdadeiro valor de alguns indivíduos que se escondem por detrás das estrelas. Surge então o superior boçal cuja imagem e gestos são trabalhados para se destacarem dos simples mortais. São os “sangue azuis”; expressão muito bem compreendida na gíria militar. Gente que se acha diferente dos outros, simplesmente por sustentar estrelas nos ombros, por ter tudo do bom e do melhor nas mesas fartas das festividades provincianas, por serem os representantes das ações da força, enfim, o próprio exército.
Gente desse tipo existe aos montões. Geralmente são pessoas oriundas de família humilde, quase sempre filhos de praças surradas pelas cobranças do cruel regulamento. Pessoas que tiveram tudo do melhor durante a infância, às custas dos suores dos pais, quase sempre obstinados a transformar os filhos naquilo que não conseguiram ser ou pertencer; a elite das armas. São tipos que fingem trabalhar para a nação, mas que na verdade trabalham para si próprios, mesmo tendo que pisar no velho companheiro de turma, desrespeitar só um pouquinho a ética e os regulamentos. São sanguessugas poderosíssimos dentro das fortalezas, perdendo considerável poder comparados aos burgueses atuais. Mas cada um deles, ao concluírem o curso na Academia, já imaginava tal comodidade: a imagem da mesa, com a placa ao centro, em letras grandes, com o posto e o nome de guerra; as pequenas quinquilharias que lembram os quartéis passados; os quadros na parede de diplomas sem importância e fotos embusteiras; o ar severo da aparente experiência; as gavetas repletas de papéis inúteis, revistas pornográficas e telefones de mulheres da rua. Também, possivelmente, imaginavam as conversas sem proveito que fariam parte: as reuniões a cada novidade; as ordens absurdas e imbecis; a pilhéria no inexperiente soldadinho etc.
O descontentamento é bem característico na caserna e não é apenas sintoma das praças. Pobres praças, tudo de negativo, limitado e feio lhe são atribuídas. A desmotivação também faz parte do oficialato, pois muitos consideram seus talentos de artistas desperdiçados diante de um ambiente rotineiro e burocrático. É preciso então arrumar problemas internos para alegrar e valorizar um pouco da capacidade escondida atrás da mesa velha cheia de quinquilharias: modifique-se então a rotina de envio de expedientes; estabeleçam-se regras mais duras para as praças mais problemáticas; criam-se mais serviços para os subordinados; represente um papel de chefe durão e abastado. Também demonstre em todos os momentos que os melhores, os mais finos, os mais corretos, os mais dignos são aqueles, que mesmo sem saberem, ostentam estrelas. Assim, modifica-se por completo um ambiente na caserna, de enfadonho e sem sentido, para opressor e limitado.
E segundo Orlando, muitas praças adoram inconscientemente esse tratamento. Nas rodas de cabos e soldados velhos e até mesmo de sargentos, escutam-se falar, com certo saudosismo, das loucuras despóticas de certo capitão, de certo tenente. Que o capitão Fulano deixou a todos várias horas debaixo do sol quente a conversar bobagens. Que o tenente Sicrano punia até sargentos por poucos minutos de atraso.
Orlando me disse que tinha um Cabo Pedro que sempre repetia histórias de um tal Capitão Lacerda, sujeito rude e mal educado com praças. Era característico do autoritário Capitão Lacerda desmoralizar qualquer atuação de seus subordinados perante atividades protocolares. Não havia motivação alguma no comando desse saudoso e mal falado capitão.
Mas ainda bem que existem exceções, são os oficiais da mais pura e nobre formação. O Capitão Haroldo é um bom exemplo. Oficial dedicado, humano e gentil, o Capitão Haroldo com meias palavras convence qualquer um dos seus subordinados. Não possuía o triste hábito de punir por punir aqueles sob o seu comando, punia apenas quando não tinha outra saída.
O enfado faz parte da vida na caserna, como dizia o Orlando que me autorizou com muita gozação o tratamento íntimo. Fim de tarde em quartel sem expediente é a coisa mais triste de se ver. Ao cair do crepúsculo, vê-se pouca gente desfilando com os surrados e mal-cheirosos uniformes camuflados que de longe propagam a idéia de servir muito mais que uma vestimenta, mas sim, como molde único para cada posto e graduação.
Quem passa próximo à sentinela das armas não é o cabo Argemiro, mas sim um cabo; poderia ser o Orlando, o Anselmo, o Batista, poderia ser qualquer um, que interesse tem pra caserna? O uniforme não defende escolaridade, não defende pensamento, muito menos personalidade. O que se vê é apenas um corpo que sustenta uma farda de soldado, de cabo, de sargento; pra instituição não importa quem seja. Aliado aos poucos uniformes que passam em movimentações sonolentas e sem destino certo, as copas das árvores parecem sofrer de paralisia aguda, pois a falta da brisa e do canto dos pássaros contribuem ainda mais para uma atmosfera triste e muito, muito sonolenta de fim de tarde.
A rotina triste e cansativa do início da noite, à espera da hora da cama, toma dos soldados desatentos com ares sorumbáticos, a preguiça e o descomprometimento característicos de jovens que sonham com a hora de rever a nova namoradinha, em locais repletos de luz e alegria, ao contrário do aquartelamento em que estão: escuro, triste, frio, rancoroso, opressor.
Segundo Orlando, com seus quinze anos cravados de caserna, as motivações e entusiasmos não chegam ao sexto mês de aquartelamento. Muitos jovens, cujas personalidades ainda estão em fase de desenvolvimento se sentem inseguros quanto à vida e quanto a si mesmos. A motivação de ostentar um fuzil, possuir uma limitada autoridade, ter certo respeito fazem com que muitos jovens liberem energias nunca antes testadas; são as vibrações características dos gritos de guerra, das marchas a pé firme, do garbo nos movimentos de ordem unida armada, no rosto sério e frio. Como disse Orlando, não duram seis meses...
No contato com a rotina sem guerra, com o soldadinho malandreado e sem futuro, com os exemplos negativos de oficiais e sargentos desmotivados, surge então o soldado sorumbático, temperamental e relapso...
De repente, voltei a si com o toque da corneta que autorizava a saída de todos do quartel. Era fim de mais um expediente. Mesmo ainda muito pensativo, entrei em forma com minha documentação para a inspeção do sargento, que já berrava acionando os outros soldados. E assim fui pra casa e assim terminou mais um dia no triste quartel.

(Por Franco Aldo)

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